Carta de amor às minhas filhas em tempos de confinamento, Marcos Danhoni

"Hoje, minhas filhas, os velhos estão sendo rifados pelo sistema econômico que engendrou a praga. Estamos cegos, confinados, pensando em como sacrificar nossos pais, avós e toda a geração que nos trouxe até aqui em nome do lucro advindo da destruição do planeta. Mas nós não o faremos"

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“Se queres ser cego, sê-lo-ás”.

(José Saramago)

Por Marcos Cesar Danhoni Neves*

Minhas filhas, vocês sabem que completo 57 anos no próximo mês. Estamos separados pela contenção/confinamento, como único remédio para evitar uma doença que tem-se mostrado letal por onde passa (3,75% em todo o mundo e quase 10,0% de mortalidade entre os infectados na Itália).

Vivemos num país conflagrado pela ignorância e pelo neofascismo Bozo-Olavista. Este fator fará com que a pandemia aqui seja ainda maior e mais letal. Vocês me perguntaram se eu já tinha passado por algo parecido em minha vida. E respondi-lhes: a Tia Rosinha ficou “aleijada” pelo surto da poliomielite que se abateu sobre o Brasil e o mundo todo, quando milhares de crianças morreram ou ficaram paralíticas. A Tia Ana ficou surda de um ouvido no distante 1976 quando o regime militar escondeu a epidemia de meningite, que matou milhares, por não ter tido a capacidade de comprar e/ou produzir vacinas (seus dois outros tios, meus irmãos, também contraíram a doença mas escaparam sem sequelas).

Sobrevivi e sobrevivemos à AIDS, à dengue, à zika, à chicunguya, à tuberculose (que um de seus tios teve), à hanseníase (que seu bisavô teve), à síndrome da encefalopatia espongiforme (Vaca Louca), à H1N1, etc. Em síntese, o curso da vida nos impõe obstáculos difíceis ou letais. Em meu caso, consegui sobreviver, fortuitamente, a todas epidemias de maior ou menor espectro. Sobrevivi, paralelamente, a todo o ciclo do regime militar de 1964, mesmo editando jornais pequenos antifascistas na Universidade: O PODER, e A RESISTÊNCIA, sem me calar sob a ditadura! Mas hoje a urgência se impõe porque o COVID-19 é a mais letal das pandemias devido à sua velocidade, ainda mais no Brasil potencializada pelo fascismo Bolsonarista!

Tentei contar-lhes que, mesmo em meio ao caos apocalíptico de uma epidemia ou de uma tragédia de dimensões globais, é possível viver e aprender. Isaac Newton precisou se refugiar na fazenda de maçãs de sua mãe em Whoolsthorpe. Lá, distante da pestilenta Londres de 1665-66, ele dedicou-se aos estudos e inventou o cálculo diferencial e integral, o método binomial; descobriu a decomposição da luz branca nas luzes do espectro visível e começou a imaginar se a força de gravidade não se estenderia para a Lua e além. Contei ainda sobre a história de Albert Einstein, que precisou emigrar da Alemanha em 1933, devido ao pesadelo nazista; ou de meu caro amigo, Giulio Cortini, físico em Roma e partigiano, que explodiu 33 nazistas, mas resolveu viver escondido como guerrilheiro pelas vielas da cidade eterna. Fizeram ciência mesmo sob o domínio do medo, do terror e da morte iminente.

Tentei ainda contar-lhes, das reminiscências de minha memória, sobre a beleza de alguns livros, especialmente A PESTE, de Albert Camus; UM DIÁRIO DO ANO DA PESTE, de Daniel Defoe (que escreveu Robison Crusoé – e que conta a história da peste em Londres); AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA, de Gabriel Garcia Marques, e ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, de José Saramago. Estas Obras, duras e trágicas em suas histórias, tratam da Peste, da Morte, mas, sobretudo, do amor e de nossa infinita capacidade de sobreviver às condições mais inóspitas, num ato de comunhão com a Vida!

Na “Peste” de Camus, o autor relata que antes de chegar ao auge da doença, enquanto o flagelo reunia todas as suas forças para lançá-las sobre a cidade e apoderar-se dela definitivamente, os longos e desesperados esforços dos últimos indivíduos eram aqueles realizados na tentativa de reencontrar suas felicidades e tirar à peste essa parte deles. Era essa sua maneira de recusar a servidão que os ameaçava, e embora essa recusa, aparentemente, não fosse tão eficaz quanto a outra, a opinião do narrador é que ela tinha efetivamente um sentido e comprovava também nas suas próprias vaidades e contradições o que havia então de altivez em cada um de nós.

Daniel Defoe, por sua vez, relata em sua Londres pestilenta o fechamento das casas com seus habitantes dentro, considerando que também as casas eram contaminadas e seus habitantes perigosos para a comunidade. No auge da pestilência, morreram 40 mil pessoas num único mês. Imagine o que não foi para aquelas pessoas, mortas sem assistência, policiadas.

García Márquez, em seus tempos do cólera, relatava que achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias, naquele desespero coletivo da morte quase certa; da morte absoluta de si e de todos.

Saramago, com uma visão ainda mais apocalíptica, vizinha à que temos hoje com o COVID-19, dizia que estamos destruindo o planeta e que o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que Saramago chamava de a “cegueira” da razão. Dizia ele: “Se queres ser cego, sê-lo-ás”.

Hoje, minhas filhas, os velhos estão sendo rifados pelo sistema econômico que engendrou a praga. Estamos cegos, confinados, pensando em como sacrificar nossos pais, avós e toda a geração que nos trouxe até aqui em nome do lucro advindo da destruição do planeta. Mas nós não o faremos, porque conhecemos a solidariedade, a compaixão, o afeto, o amor!

Esta carta é para mostrar que gerações e gerações passaram por experiências apocalípticas, mas se reergueram das cinzas para depois nelas mergulharem após vastos e vastos incêndios, num ciclo infindável de uma humanidade que custa a aprender com a própria (e dolorosa) experiência do existir.

Mas em tempos do Corona, quero dizer que as amo e sempre as amarei, mesmo à distância e na clausura de nossos medos, que tornaram-se nosso lares. Suportaremos todas as dores porque nos preocupamos com os que virão. Parafraseando Saramago: “Lembrem-se de mim como uma rosa” ... e, assim, nos percamos no enredo sinuoso de O NOME DA ROSA de Umberto Eco, lutando contra o mal do próprio homem, de tentar, a todo custo, matar a essência de nossos sentimentos e daquilo que somos e seremos! Somos fortes e nos amamos! Beijos!!!!

De seu pai...

*Marcos Cesar Danhoni Neves é Professor Titular da Universidade Estadual de Maringá, autor do livro “Lições da Escuridão” entre outras obras

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