Por Estevan Mazzuia *
“Hoje a Leandro tão bonita faz o seu papel
Pede licença e mostra a realidade nua e crua
No quadro negro a nossa luta continua”
Foi com esse genial trocadilho com a expressão sinônimo de lousa e de situação extremamente adversa que Mauro Pirata, Tony Almeida e Beto Muniz transformaram em samba o enredo de Marco Aurélio Rufinn sobre a educação, que levaria a Leandro de Itaquera a um honroso sexto lugar entre as 12 agremiações que disputaram o carnaval paulistano em 1999.
O fio condutor era a obra de Paulo Freire, que completaria 100 anos no último domingo, se não tivesse falecido em 02 de maio de 1997, de ataque cardíaco decorrente de um procedimento para a desobstrução de artérias.
Com 3000 componentes, entre eles um Eduardo Suplicy bem fora do ritmo (como sambista, é um ótimo político), distribuídos em 23 alas e 6 carros alegóricos, a vermelho-e-branco da zona leste trouxe seu símbolo, um leão, logo no carro abre-alas, como de praxe. A novidade é que, desta vez, ele vinha com as “asas da liberdade”. Liberdade que, para Freire, somente a educação proporciona ao ser humano. E cá estamos, nesse fundo do poço em 2021, para comprovar aonde a ignorância pode enfiar uma nação.
Sobre a escultura do leão, a atriz Taís Araújo que, por muitos anos, defendeu as cores da escola. Mestre Lagrila, um dos maiores de toda a história de nosso carnaval, conduziu os ritmistas, e Eliana de Lima mais uma vez puxou o samba da escola na avenida.
As alas do primeiro setor representavam o descaso dos políticos com a educação, a violência e o tráfico de drogas interrompendo o sonho de muitos jovens com um choque de realidade, e a luta de toda uma comunidade, formada por pais, professores e estudantes, contra a tentação do abandono aos estudos.
O segundo setor era biográfico, mencionando as primeiras leituras do pequeno Paulo, ainda em Recife, sob a sombra de uma mangueira e com o carinho e a atenção de sua mãe, Dona Tudinha. Passava pelo método de alfabetização desenvolvido pelo educador, até o exílio forçado pelos militares, que extinguiram o Plano Nacional de Alfabetização implantado por João Goulart e mantiveram Paulo encarcerado por 70 dias, como traidor da nação. Sim, não é de hoje que militares defendem uma nação completamente ignorante.
Durante o período, Paulo passou por Bolívia (representada, no desfile, por um grupo folclórico), Chile e Suíça, além de países africanos, como Moçambique e Guiné-Bissau. As andanças de Freire pelo mundo vieram representadas no terceiro carro: de braços abertos, uma escultura de Paulo girava sobre um globo terrestre estilizado.
O setor seguinte retratava a questão da escola como única fonte de alimentação para os mais pobres. Paulo questionava o modelo no qual crianças frequentavam a escola em troca da merenda, uma inversão de valores que subvertia a função social da instituição, revelando as agruras de uma sociedade colapsada.
Globalização e informatização também foram lembradas em algumas fantasias, assim como a ludicidade, ampliando as ferramentas de aprendizagem, presente na quarta alegoria, que trazia, à sua frente, a mensagem: “lugar de criança é na escola”.
O ensino universitário foi representado na quinta alegoria, que trazia o apresentador Gilberto Barros à frente.
Uma de minhas alas favoritas trazia membros trajando coloridas becas: a ala “roda viva”, formada por cadeirantes. Cá entre nós, um nome maravilhoso!
As baianas exibiram saiotes nas cores do arco-íris pois, ao final dele, sempre há um pote de ouro. Tal qual o arco-íris, o processo educacional também nos conduz a um imenso tesouro.
Encerrando o desfile, uma alegoria trazia o homenageado em forma de anjo, conduzindo as crianças para um futuro no qual a educação é a chave para a transformação do mundo em um lugar mais justo e com oportunidades iguais a todos.
Paulo Freire colecionou títulos de Doutor Honoris Causa mundo afora, publicou diversos livros, entre eles o “Pedagogia do Oprimido”, de 1968, um dos cem livros mais citados e traduzidos em todo o mundo, na área de educação, no qual afirmou que “nenhuma pedagogia que seja verdadeiramente libertadora pode permanecer distante do oprimido, tratando-os como infelizes e apresentando-os aos seus modelos de emulação entre os opressores. Os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção”.
Atacou fortemente o que chamava de conceito “bancário” de educação, em que os alunos são contas vazias a serem preenchidas com os ensinamentos dos professores, e a “cultura do silêncio”, que suprime a expressão crítica dos indivíduos socialmente marginalizados.
Por tudo isso, Paulo é odiado pelo atual desgoverno federal. Parte daquilo que foi apresentado como plano de desgoverno, em 2018, envolvia “expurgar a filosofia freiriana das escolas”.
Estamos sob a égide dos ignóbeis, dos obtusos, daqueles que odeiam qualquer um que seja capaz de elaborar argumentos, de contrapor opiniões, de apreciar arte e de desenvolver um espírito crítico.
Averso a toda forma de conhecimento e à educação, Jair Bolsonaro já se referiu a Paulo Freire como “energúmeno” e, na última semana, afirmou que “excesso de professores atrapalha”. Só não disse exatamente qual projeto de país pode ser atrapalhado pela fartura de educadores, mas a gente entendeu direitinho, “desprezidente”, a mensagem de alguém que está ávido por impedir o combate à disseminação de mentiras pelas redes sociais.
E na última quinta-feira, dia 16, por meio de decisão liminar da Exma. Dra. Geraldine Vital, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, o desgoverno federal foi proibido de continuar atentando contra a dignidade de Paulo Freire, alvo constante de ataques de JB e de seus torcedores, que não têm a mais vaga ideia de quem foi o educador, e têm ainda mais raiva de quem for capaz de lhes explicar.
“Acorda meu Brasil / Desperta pra felicidade
Eu quero amor / Eu quero amar em liberdade”
A decisão judicial pode ser um sinal de que estamos acordando, como imperava o refrão do samba da Leandro de Itaquera. É preciso felicidade, é preciso amor, é preciso liberdade para transformar.
“Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas mudam o mundo”.
Obrigado, Paulo Freire.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.