Coronavírus: A arrogância subestimou o caos e hoje nos tira a liberdade

Acostumados com a naturalidade do questionamento "quem sou eu?", falhamos miseravelmente em compreender quem é o outro e, desde já, pois, assustamo-nos com a reação daqueles que sempre foram estranhos a nós.

Henrique Rodrigues (Divulgação)
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Por Henrique Rodrigues*

Há uma pane generalizada que nos impede de compreender a reviravolta a que fomos submetidos, em nível global, em decorrência da assustadora pandemia do novo coronavírus.

Por ora, o caos soa como a hipótese mais provável e nossa pretensa liberdade está por um fio.

Fomos vítimas da própria arrogância. A soberba imperativa da pós-modernidade conduziu o homem a uma posição curiosa. Como já não acreditamos mais nos fatos e nos acostumamos à sensação de ter tudo sob controle, insistimos em priorizar e direcionar o olhar, por exemplo, ao "mercado", como se essa entidade mítica, embora reconhecidamente poderosa, fosse trazer respostas contra a praga primitiva que ameaça nossa existência.

Mais do que nunca, a sentença "o caos é uma ordem por decifrar", incluída numa das obras de José Saramago (em 'O Homem Duplicado'), aplica-se perfeitamente ao momento. Uma vez mais o alentejano ateu e pessimista ganha contornos proféticos.

No entanto, não foi só ele quem deixou reflexões úteis para esses dias em que mergulhamos nas incertezas e assistimos ao tempo passar devagar no confinamento, decepcionados e surpresos com nossa inoperância, ainda sem acreditar que não sairemos dessa incólumes.

Há dois conceitos de Zygmunt Bauman, formulador teórico da Modernidade Líquida, que julgo serem fulcrais nesse processo de compreender a desintegração da solidariedade que recai sobre nós.

Um deles, por meio de um exemplo corriqueiro, delineia a concepção do sociólogo polonês sobre a fragilidade das relações humanas, cada vez mais tênues e rasas. Ele dizia que o telefone celular, mais do que permitir a conexão entre as pessoas, permitiu manter a distância entre elas. Ironicamente, hoje, na pandemia, ele serve exatamente a esses dois propósitos: conectar e isolar.

A outra, que ele define como uma espécie de síndrome, é a "sensação potencial do eterno recomeço". A erosão e o esfacelamento das relações humanas colocou-nos num infinito processo de inquietação, fazendo crer que sempre será necessário matar um leão por dia, como se isso fosse parte indissociável de nossas vidas e, por consequência, de nossa felicidade.

Não poderíamos, então, repensar nossa existência já?

No caos, agora, essa empreitada tornou-se mais difícil. Principalmente o diálogo e a aceitação, que são frutos do entendimento.

A tarefa de conversar, esclarecer e sentir o outro é quase impossível, sobretudo quando a desordem do caos se aproxima. O empobrecimento da linguagem e da capacidade de compreensão que temos vivido nos últimos tempos conduziu-nos a uma quase novilíngua orwelliana, submetendo-nos a um nível de autoritarismo incapacitante, que demoveu nossa competência de questionar e de sentir o ambiente humano que habitamos. Ninguém nos ouve e não ouvimos ninguém.

No pós-guerra, e mais marcadamente do fim do século XX para cá, os processos de desumanização foram inflamados por um pensamento centralizado, egoísta e presunçoso, resultado de nossa inabilidade na convivência como humanos.

Com a liberdade tomada pouco a pouco e temendo o caos, a maioria parece insistir na procura por uma resposta fácil e pronta, mormente em Deus e noutras crenças.

Acostumados com a naturalidade do questionamento "quem sou eu?", falhamos miseravelmente em compreender quem é o outro e, desde já, pois, assustamo-nos com a reação daqueles que sempre foram estranhos a nós.

Agora, estamos presos dentro de casa por causa de um vírus. A impotência triunfa e conduz à apatia. A pós-modernidade não nos ensinou a conviver com a frustração e já há quem se revolte com tudo e prefira se expor à morte melancólica pelo agente invisível (o vírus, ou o mercado?) a ficar sem dinheiro.

Todas essas privações, instauradas progressivamente, potencializam-se nesse instante, quando provamos de nossa própria arrogância, que não nos permitiu enxergar a possibilidade de que um fator alheio e maior gerasse o cenário caótico e a desagregação que tanto temíamos.

Enquanto tentamos sair desse enrosco, urge que façamos um exame de consciência. Franco e sem vaidades.

Tempo não nos faltará. Aliás, quando se perde a liberdade, tempo é o que mais sobra.

*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira