Das “mulatas” de Sargentelli à “Garota de Ipanema": “Onde Anda Você”, Brasil?

Leia na Fórum Folia: Estevan Mazzuia fala da transformação de um país que vai da luta contra a objetificação da mulher até a demonização da alegria.

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Por Estevan Mazzuia *

Hoje, não sei por que, acordei com uma vontade imensa de falar sobre moda. Decerto foi a oportuna inauguração de uma exposição oficial de trajes, bem em meio ao morticínio da Covid-19. Poderia até recordar alguns desfiles de carnaval sobre o tema, mas acho que seria bater palma pra louco sambar.

Assim, olhando para o calendário e o recente escândalo sobre o comportamento de Marcius Melhem, escolhi outro norte.

A imagem do Brasil como “o país do carnaval” sempre foi explorada para atrair o turismo, a despeito de inúmeras belezas naturais desprezadas. A objetificação da mulher brasileira também foi convenientemente exacerbada, a ponto de, no atual desgoverno, a coisa parecer ter atingido o ápice da insanidade com o convite de nosso "desprezidente", há pouco mais de um ano, para os estrangeiros: “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”.

Na contramão, Niède Guidon dificilmente verá o patrimônio arqueológico da Serra da Capivara sendo reconhecido em sua relevância mundial e lugares como Angra dos Reis e Fernando de Noronha já teriam virado grandes resorts, despejando toneladas de detritos no oceano, a depender da vontade única e exclusiva de Bolsonaro, o parvo. 
 
Num cenário em que R$ 2,7 milhões são “investidos” na elaboração de uma lista de detratores do desgoverno, com informações copiadas da Wikipédia, e o honradíssimo Sérgio Moro despe-se dos últimos trapos de pudor que ainda poderiam lhe cobrir, ao aceitar bater o cartão para a empresa que ele desqualificou ao ignorar a informação prestada nos autos, comprovando que o ex-presidente Lula jamais teria sido dono do malfadado tríplex, até que o Brasil de Sargentelli não era tão ruim. 
 
Carioca nascido num 8 de dezembro, há 97 anos, Osvaldo Sargentelli era sobrinho de Lamartine Babo, compositor dos hinos (entre oficiais e extraoficiais) dos principais clubes da capital fluminense e de marchinhas como a racista “O Teu Cabelo Não Nega”. Com sua voz grave, trabalhou no rádio, nos anos 40, e logo depois foi para a TV, onde apresentou os programas “O Preto no Branco” e “O Advogado do Diabo”, nos quais costumava constranger seus entrevistados. Certa feita, teria iniciado sua entrevista com um ex-presidente estrábico com a seguinte apresentação: “Jânio Quadros, um olho no capital estrangeiro e outro em Moscou”. 
 
Com a tal “revolução de 64”, Sargentelli foi gentilmente convidado a se retirar da TV pelos “generallis”, superiores hierárquicos, claro. Desde então, passou a fazer shows com mulheres negras que denominava, de forma genérica (como há muito já fazia) de “mulatas”. Ficou famosa a expressão “as mulatas de Sargentelli”. Hoje, o termo “mulato” é visto como racista, com toda razão, na medida em que iguala a miscigenação entre negros e brancos, seres da mesma espécie, à mistura entre asnos e éguas, animais de espécies diferentes.
 
Sargentelli e suas “mulatas” tornaram-se indissociáveis, a ponto de, em 8 de dezembro, ser comemorado o Dia da Mulata (ou da “cabrocha”, outro péssimo termo). Hoje, possivelmente, Sargentelli seria “cancelado”. Feitas as ressalvas necessárias, lembro hoje do sambista homenageado pela Águia de Ouro, em São Paulo, no ano de 1988 (“O Menino da Lapa”), e pela Unidos de Villa Rica, do Rio de Janeiro, em 1999 ("Sargentelli, lenda viva do ziriguidum"). A primeira, 10ª colocada em 12 escolas do primeiro grupo, a segunda, 11ª colocada entre 11 escolas do grupo de acesso. Ambas rebaixadas. Na avenida, ao menos, Sargentelli teve a punição que mereceu. 
 
Também num 8 de dezembro, há 26 anos, nos deixava o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, considerado um dos maiores expoentes da música popular brasileira. Com Vinícius de Moraes, compôs “Garota de Ipanema”, a canção brasileira mais executada no exterior, interpretada por Frank Sinatra, Madonna e Plácido Domingo, entre outros. Teria sido escrita inspirada em Helô Pinheiro, à época uma garota de 17 anos, branca, que vivia no bairro carioca, onde foi vista pelos autores da obra, no inverno de 1962. A crítica da objetificação da mulher também pode ser feita à canção (“Moça do corpo dourado / Do sol de Ipanema / O seu balançado é mais que um poema / É a coisa mais linda que eu já vi passar”). Tom Jobim foi homenageado pela Estação Primeira de Mangueira, em 1992, com o enredo “Se Todos Fossem Iguais a Você”, que conquistou o sexto lugar, cantando “Vem, vem amar a liberdade, vem cantar e sorrir, ter um mundo melhor / Vem, meu coração está em festa, eu sou a Mangueira em Tom maior” (composição de Alvinho, Hélio Turco e Jurandir). 
 
Ainda é tempo de amar a liberdade, ter um mundo melhor. Mesmo na era do cancelamento, chega a ser criminoso resumir Jobim à objetificação feminina retratada em sua canção de maior sucesso. Até onde sei, pelo menos, ninguém nunca ousou fazê-lo. Sargentelli, por outro lado, parece não ser merecedor do mesmo destino. Há quem prefira lembrá-lo por seu sorriso, por sua alegria. Há também os que afirmam que somos produto de nosso tempo. Daí a convidar estrangeiros para fazer turismo sexual em nosso território, há léguas de distância, sobretudo quando se ocupa a cadeira da Presidência e se reforça todo tipo de discurso conservador e hipócrita.
 
Não posso deixar de lembrar que, na semana que passou, celebramos o Dia Nacional do Samba (02 de dezembro). Instituída por sugestão de um vereador soteropolitano, a data faz referência ao primeiro dia que Ary Barroso teria visitado Salvador. 
 
Por fim, gostaria de dedicar o artigo de hoje a John Lennon, assassinado por Mark Chapman em 8 de dezembro de 1980. Preguiçoso assumido, Lennon dedicou boa parte de suas energias à luta por um mundo melhor (tal qual Alvinho, Hélio Turco e Jurandir desejariam, anos depois) e menos desigual. 

Vamos cantar e sorrir. Buscar um mundo melhor. Um Brasil melhor. Não somos esse ódio aí, essa coisa representada por Damares Alves, Sérgio Camargo et caterva. Esse conservadorismo tosco e atrasado.
 
Alguns poderão dizer que eu sou um sonhador. Mas estou certo de que eu não sou o único. E outra: o que seria o carnaval senão um sonho?

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.