Degradante espetáculo da PEC dos Precatórios exige reforma eleitoral - Por Zé Dirceu

Num momento que o país precisa concentrar os recursos orçamentários em áreas estratégicas como a educação, a ciência e a tecnologia, a inovação, a saúde e pesquisa científica, a infraestrutura, o que vemos é um festival de emendas sem adesão às necessidades reais da população do país.

Arthur Lira anuncia exigência de carteira de vacinação para entrar na Câmara (Foto: Divulgação/Câmara dos Deputados)
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Por José Dirceu*

O degradante espetáculo da votação da PEC dos Precatórios expondo as vísceras das emendas impositivas e do Orçamento secreto e a decisão do STF exigindo transparência e cumprimento da lei do orçamento exigem uma resposta à altura deste grave, e já permanente, abuso de poder que, aos poucos, corrompe a democracia e avilta o Congresso.

A questão de fundo é o nosso sistema eleitoral. Se a proibição de doações empresariais tem que ser mantida, é preciso pôr fim à burocracia e ao punitivismo do TSE com relação às doações de pessoas físicas. Pois estão envoltas num emaranhado de exigências fiscais e legais num país onde já se faz transferência eletrônica instantânea de dinheiro, sem burocracia e sem pagamento de taxa bancária, pelo PIX. Algo inacreditável.

A gravidade das emendas impositivas não se limita ao seu lado secreto, à simples compra de apoio a iniciativas do governo, ao impedimento da abertura de processos contra o presidente ou à autorização para o Judiciário processá-lo. Por trás desse uso e abuso do poder econômico do Executivo, temos o acúmulo de poder econômico por congressistas. A prática está se estendendo às assembleias legislativas e câmaras municipais. Levam a um desequilíbrio gigantesco na igualdade de condições para a disputa das eleições legislativas, com políticos distribuindo centenas de milhões de reais a prefeitos. Fora o fato concreto de que essas obras envolvem empresas, que passam também a apoiar –quando não “financiar”– esses candidatos, o que é ilegal.

Mais grave ainda é o desperdício de recursos públicos, escassos em tempos de teto de gastos e regra de ouro, e o baixíssimo retorno desses investimentos à mercê de interesses eleitorais de prefeitos e parlamentares. Como não são resultado de prioridades e planejamento, esses investimentos têm custo-benefício baixo.

Num momento que o país precisa concentrar os recursos orçamentários em áreas estratégicas como a educação, a ciência e a tecnologia, a inovação, a saúde e pesquisa científica, a infraestrutura, o que vemos é um festival de emendas sem adesão às necessidades reais da população do país. Há um excesso de recursos para determinadas áreas e cidades em detrimento daquelas que realmente contam e trazem um retorno social e econômico. É o desmonte do próprio Orçamento geral da União, de suas prioridades e urgências.

Isso sem falar nos desvios de recursos públicos nas obras desnecessárias, nas inacabadas e nas superfaturadas ou simplesmente nas cobranças de “pedágios” para financiar campanhas eleitorais.

Reforma Política

A pergunta que precisa ser respondida é: como mudar esse quadro deplorável? E por qual instrumento legal e constitucional, para além da simples revogação das medidas legais que buscam legitimar e perpetuar tais práticas?

A resposta é uma reforma eleitoral. A chamada reforma política, usada como arma contra Lula e Dilma, como pretexto para a famigerada Lava Jato e depois esquecida pelos mesmos que abusaram de seu uso na luta política.

É preciso mudar o nosso sistema eleitoral antes que ele caia por pressão das ruas ou nas urnas pelo descrédito expresso na abstenção, e nos votos branco e nulo. Temos que evitar que o Congresso, coração da democracia e expressão máxima da soberania popular, se degrade e leve junto o voto secreto e universal e a alternância de poder, ou simplesmente privatize também o Congresso pela predominância do poder econômico.

A 1ª mudança, talvez a mais difícil, é voltar ao princípio de 1 voto para cada cidadão ou cidadã, expresso na eleição de deputados conforme o número de habitantes de cada Estado da federação – sem pisos. Hoje, no lugar da proporcionalidade, temos um mínimo de 8 deputados por Estado e um teto de 70 deputados, herança maldita da ditadura militar.

Essa deformação é responsável em parte pelo predomínio do conservadorismo e da direita no Congresso. Hoje, 10 estados com 20 milhões de eleitores elegem 80 deputados; São Paulo, com mais de 40 milhões de eleitores, elege 70. Algo assim só existe no nosso Brasil.

A 2ª mudança refere-se à necessidade de fidelidade partidária absoluta. A atual é uma fidelidade de mentira consagrada pelo STF que foi desconfigurando o princípio, o que vem se revelando trágico para a democracia:

  • autorizações para mudança de partido em casos de perseguição;
  • mudança de programa;
  • fusão ou incorporação, se o partido autoriza a mudança

Em 3º lugar, faz-se necessário mudar radicalmente nosso sistema de eleição de deputados e senadores de caráter uninominal. Hoje, o eleitor pode votar num partido (voto de legenda) ou num dos candidatos de um partido, que organiza uma lista de candidatos, cabendo ao eleitor a escolha. São eleitos tantos deputados quantos os votos na legenda e nos candidatos, cabendo a cada partido tantos deputados conforme os votos obtidos. O cálculo é simples: divide-se o número de cadeiras do Estado, 70 em São Paulo, pelos votos válidos e se obtém um coeficiente eleitoral. Cada partido terá um deputado a cada vez que somar o coeficiente eleitoral; se fizer 10 coeficientes eleitorais, terá 10 deputados.

O problema desse sistema, para além da deformação da representatividade de cada Estado, é que cada candidato disputa uma vaga com seus próprios colegas de partido, já que a lista é organizada pelos mais votados. Assim, se um partido elegeu 4 deputados, serão os 4 mais votados.

A prática mundial é o voto em lista, aberta ou não, o voto distrital e o voto distrital misto proporcional, onde o eleitor vota duas vezes no distrito e na lista partidária e o cálculo do número de deputados se dá pelo voto na lista. Daí o nome “proporcional”, já que a eleição no distrital é majoritária simples ou em 2 turnos.

Sistema caro

Nosso sistema encarece como nenhum outro as eleições: cada candidato é uma campanha. No distrital, a campanha é restrita a um distrito, com um número menor de eleitores e menor território. No voto pela lista, é uma campanha só pela lista e seu líder, o puxador de votos –no parlamentarismo, o candidato a primeiro-ministro. A lista pode ser aberta ou fechada e é necessariamente organizada por eleições internas nos partidos, onde votam todos os filiados. A chapa final é composta proporcionalmente aos votos de cada chapa, retirando das burocracias e direções partidárias o controle das listas ou mesmo dos parlamentares já com mandato.

Para além das fake news, do abuso do poder econômico, da cada vez maior influência da mídia corporativa nas eleições –esta praticamente vive em campanha por ideias e propostas da direita–, é preciso manter o fundo partidário e eleitoral e simplificar e massificar as possibilidades das doações de pessoas físicas, para que cada vez mais cidadãos e eleitores financiem as campanhas.

Uma Câmara dos Deputados proporcional à população de cada Estado e um Senado da República com 2 senadores por Estado são metas fundamentais da reforma política. Também fundamental é rever os poderes do Senado, hoje hipertrofiados, em detrimento da Câmara dos Deputados, que representa a nação. O Senado –como o nome “federal” indica– representa a federação, mas é câmara alta revisora e com iniciativa legislativa e poderes extras como:

  • processar o presidente da República e os ministros dos tribunais superiores;
  • indicar juízes dos tribunais superiores, embaixadores, diretores das agências reguladoras, PGR, presidente e membros do BC;
  • autorizar as operações externas de natureza financeira da União, estados e municípios;
  • fixar por proposta do executivo os limites da dívida pública dos entes federados, e por aí vai.

A função principal do Senado é a defesa da federação, já que é eleito majoritariamente e a representação de cada Estado é igual, independente da sua população. Não há, portanto, razão para ter poderes próprios da nação que são da competência da Câmara dos Deputados. Como 12 Estados com aproximadamente 25% do eleitorado elegem a maioria (42 senadores de 81), podemos antever a excessiva concentração de poderes no Senado.

Saídas casuísticas sem reforma eleitoral e política, soluções milagrosas como o parlamentarismo –rejeitado duas vezes em plebiscitos em 1963 e 1993– ou semi-presidencialismo –como em Portugal ou mesmo França– não têm nenhum propósito a não ser impedir a eleição de Lula em 2022.

É preciso nas próximas eleições eleger deputados e senadores comprometidos com uma ampla reforma eleitoral, que deve ser defendida como prioridade em toda a campanha. O povo brasileiro precisa ser esclarecido sobre os graves problemas da atual legislação política e eleitoral, e saber que a busca de caminhos mais corretos vai depender dos próprios congressistas ou de um plebiscito que também depende de aprovação do Congresso para sua realização.

*José Dirceu é advogado e ex-ministro da Casa Civil no governo Lula. Foi deputado estadual e federal pelo PT e ministro da Casa Civil (governo Lula). Foi condenado na Lava Jato a 32 anos e 1 mês de prisão e solto quando o STF proibiu prisões pós-condenação em 2ª Instância. Lançou em 2018 o 1º volume do livro “Zé Dirceu: Memórias”.

Publicado originalmente no site Poder 360

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.