Do mito ao estelionato, por Chico Alencar

Bolsonaro, populista de extrema direita, produziu, qual Hitler e Mussolini, uma imagem como contestador do sistema em crise que o gerou

Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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Por Chico Alencar*

No último pleito nacional, no 2º turno, 55,13% dos votos válidos foram para Jair Bolsonaro, um notório defensor do regime empresarial-militar iniciado pelo golpe 1964, que suprimiu o sufrágio e as liberdades. Diante desse paradoxo, muitos se interrogam: o que levou tanta gente – inclusive nossos parentes e amigos – a fazer tal escolha?

Quem elegeu Bolsonaro não foi enganado: ele nunca negou seus pendores autoritários e sua aversão aos direitos humanos, seu fascínio pela tortura, seu desinteresse pela ciência. Ele nunca escondeu sua visão preconceituosa sobre os povos indígenas e quilombolas e sobre os segmentos LGBTs. Ele nunca acobertou seu machismo, chegando mesmo a dizer, em plena campanha, que ter uma filha “foi uma fraquejada”.

Bolsonaro, populista de extrema direita, produziu, qual Hitler e Mussolini, uma imagem como contestador do sistema em crise que o gerou. Como um “rude”, à semelhança dos comuns do povo. E como ético, que nunca entrou em falcatruas. “Deslizes” em sua longa vida parlamentar, como gastos extraordinários com combustível, apartamento funcional “para comer gente” e funcionária fantasma foram relevados como “coisa menor”. A estúpida facada completou sua imagem de “servo sofredor” da gente a quem queria se doar, além de ser álibi para fugir dos debates.

Pessoas “ilustradas” votaram nele, revelando seu desprezo por princípios e valores humanitários. Tudo em nome de se evitar o “mal maior”, o PT. Bolsonaro, cevado no aparato de Estado, espertamente aderiu ao ultraneoliberalismo que Paulo Guedes tão bem representa – e aplicou no Chile de Pinochet. A pauta do privatismo máximo e do Estado mínimo rendeu ao capitão a adesão da elite econômica e seus caudatários. Às favas com qualquer escrúpulo, reza a ideologia do mercado total.

Descobriu-se um novo Bolsonaro exibido no pandemônio da rumorosa reunião ministerial de 22 de abril: sem noção das relações republicanas, grosseiro, inseguro, preocupado sobretudo consigo mesmo, inebriado pelo poder. Chefe de um governo perdido na crise, com ministros “vaquinhas de presépio” que aceitam passar qualquer boiada. Sem projeto, exceto o da “guerra” contra “comunistas” imaginários, entre esses até governadores conservadores. Bolsonaro 1º presidente da República DEGENERATIVA do Brasil, que intenta consolidar com um autogolpe.

Entretanto, cresce, de maneira lenta mas consistente, a percepção de que 57.796.986 pessoas foram vítimas de um grave estelionato eleitoral. Só uma minoria desses votou aspirando um governo militarizado, com arroubos fascistóides, com vínculos com o banditismo das milícias, inimigo do cuidado ambiental e dos indígenas e quilombolas, indiferente às agruras do povo pobre e das micro e pequenas empresas, preocupado em “armar as pessoas” - não o MST e o MTST, claro! - para contestar medidas contra a expansão do vírus (a Taurus, outras fábricas de armas e as milícias agradecem) e reproduzir a mais cruel dominação de classe.

Bolsonaro, mandonista, entende o governo como extensão de sua casa, e não apenas pela espúria “filhocracia”. Ele revelou que tem um sistema particular (e ilegal) de informações, típico dos autocratas, e que não admite ser “surpreendido” com investigações sobre parentes e amigos. Ele também reitera a insensibilidade de seu governo em relação ao sofrimento do povo com a pandemia. Naquela algaravia ministerial, o assunto foi abordado durante sete dos 118 minutos do encontro, e o próprio Bolsonaro tratou de encerrá-lo, criticando um policial rodoviário que publicizara a morte de um colega pela Covid-19. É o “e daí + “cala a boca” + “acabou, porra!” como prática de governo!

Bolsonaro, que execrava (de mentirinha) as falcatruas e o Centrão, sua expressão partidária maior, a ele adere sem pudores. Desde meados do ano passado faz indicações nada “técnicas”, no Ibama, Incra, Funasa, Dnit, Iphan e SPU. Agora, negocia a entrega de cargos com orçamentos bilionários – R$ 86 bi este ano! - e execução de políticas fundamentais para a população. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, com o PP de Maluf, controlará o repasse de recursos para estados e municípios na educação básica. O Banco do Nordeste foi destinado ao PL de Valdemar Costa Neto. O Conselho da Itaipu Binacional ganhou o “reforço” de Carlos Marun, líder da tropa de choque de Cunha e ex-ministro de Temer. Um jeton polpudo o aguarda.

Sabe-se que Bolsonaro, o da “gripezinha”, usa máscara a contragosto. Mas a máscara que o elegeu – do honesto, do adversário do sistema e do homem corajoso em relação ao bem comum – vai caindo até diante de quem o colocou na presidência. Mais uma vez em nossa história republicana, vai dar ruim para quem se torna disfuncional até para alguns setores do Capital - desde que crescentes parcelas da sociedade se organizem e lutem, em frentes anti-fascistas. Frentes naturalmente plurais, policlassistas, mas sem abandonar os interesses dos secularmente explorados. Contra a abjeta danação, para o bem da Nação.

*Chico Alencar é professor, escritor e ex-deputado federal (PSOL-RJ)