Empatia nunca é inapropriada, por Ana Beatriz Prudente

"Ainda hoje, muitas vezes, quando demonstramos de forma empática e franca uma emoção, esbarramos com um julgamento negativo. Por trás dessa atitude está exatamente o resquício de uma época em que as pessoas eram induzidas a serem mais artificiais"

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Por Ana Beatriz Prudente*

Ana Beatriz Prudente (Arquivo pessoal)

A vida tem regras de etiqueta para torná-la mais civilizada, mas nenhuma é mais importante do que a empatia. Muitas vezes, alguns atos perturbam os paladinos das boas maneiras, mas quando isso acontecer, lembre-se: nenhum ato de bondade genuína é inapropriado.

A etiqueta, as chamadas regras de comportamento, surgem para estabelecer situações sociais especificas. Tudo que foge do estabelecido, muitas vezes, é visto como não apropriado e deselegante. Mas, se sua motivação é o bem do próximo, se você está movido por um dever altruísta e cívico e se esta atitude tem como objetivo o bem-estar do outro -  ainda que não seja aprovada pelos costumes estabelecidos -, será apropriada do ponto de vista humano. O que prova que a empatia está acima das normas sociais.

Certamente, as normas facilitam a comunicação, o respeito e o convívio com as pessoas, além de nos auxiliar a humanizar a relação com as pessoas. No entanto, historicamente, elas surgiram para nos ensinar a esconder sentimentos, a tolher desejos. Em nome da boa convivência e dos bons modos, as pessoas, sobretudo as mulheres, eram obrigadas a suportar situações ainda que não concordassem com elas. Aí está a origem de boa parte de problemas que enfrentamos até hoje, como o machismo e o racismo estrutural brasileiros. As normas de conduta, historicamente, exerceram um papel de controle social, inclusive, impedindo a mobilidade social de classes menos abastadas e perpetuando muitas ações cruéis. 

A sociedade moderna herdou esses costumes. Ainda hoje, muitas vezes, quando demonstramos de forma empática e franca uma emoção, esbarramos com um julgamento negativo. Por trás dessa atitude está exatamente o resquício de uma época em que as pessoas eram induzidas a serem mais artificiais. Esse foi um dos fatores que colaborou para que diversas formas de violências fossem aceitas na atualidade. Nesse sentido, a internet é um dos palcos mais propícios onde acontecem essas situações. Mas, quais os critérios usados nesse tribunal online? São as questões morais.  Portanto, a etiqueta foi socialmente moldada a partir de parâmetros morais de uma determinada civilização. 

As mulheres, por exemplo, mesmo nas grandes cidades, desde a antiguidade, foram treinadas ainda pequenas a se calarem. Mulheres que não manifestavam opiniões eram consideradas elegantes, uma invisibilização política. Na Grécia antiga, por exemplo, elas não eram consideradas cidadãs. Convivia-se em pequenas comunidades políticas, chamadas Pólis. Para ser considerado um cidadão da Pólis era preciso seguir alguns critérios: ser homem, filho de pessoa detentora do mesmo estatuto, pagar impostos para a comunidade onde estava vinculado e ter um patrimônio mais robusto.  O que restringia muito a cidadania na época, tanto que em Atenas, na Ágora (espaço político de fundamental importância na constituição do espaço urbano da cidade), era possível reunir todos os cidadãos das Pólis para governá-la. Naquela época, as regras serviam para manter a estrutura social e, ainda hoje, parecem não ser tão diferentes, ainda que vivamos situações econômicas e políticas bem diversas. Cabe a nós, cidadãos do século XXI, construir relações mais democráticas, de priorizar a bondade genuína e a empatia – e que permita nos colocarmos no lugar do outro e, acima de tudo, faça com que reconheçamos nossos privilégios.

A arte da artificialidade no século XIX

Vem de muito tempo a repressão feminina e a escravização da mulher pelas regras de etiqueta. Diversas normas de conduta foram estabelecidas no século XIX pela aristocracia, de forma que todos pudessem frequentar jantares e bailes e serem aceitos pelos seus iguais. Existiam manuais escritos, para homens e mulheres, com peso maior para o lado feminino já que as mulheres tinham que tomar muito mais cuidados para se apresentarem socialmente. O livro Código do bom tom, escrito pelo cônego português, José Inácio Roquette, em 1845, é um exemplo. Lida por várias décadas e conhecida na elite imperial brasileira, a obra mostrava um pai descrevendo para seu filho e sua filha como deveriam se comportar em nome da ciência da civilização. Portanto, um treinamento de artificialização que ensinava a esconder os sentimentos. É o que chamamos hoje de sociedade pokerface, onde tudo é moldado para que se absorvam costumes, de maneira gradual e intensa, até se tornem tão naturais que pareçam inatos ao ser humano.

Este renomado manual, de grande sucesso nas mesas mais abastadas, ditava regras como: “Se todos ficarem calados, cala-te também”; “Se te divertires, não demonstre senão uma alegria moderada”; “Se estiveres aborrida, dissimula e não deixe perceber”.  Além disso, destacava que não era de bom tom prolongar conversas, recusar comidas que fossem oferecidas e ensinava que dissimular era uma atitude educada, a sinceridade nunca. Para as mulheres, chamar atenção era proibido, pois poderia causar embaraços. 

 É justamente nessa época, com destaque para 1808 e as décadas seguintes, que os bailes crescem no Rio de Janeiro, com a vinda da família real portuguesa, -  e que as condutas de boa convivência se intensificaram. Surgem as agremiações de danças frequentadas por aristocratas, diplomatas e cidadãos ligados aos meandros políticos. Entre 1830 e 1850 se dá o auge desses eventos, em locais públicos ou residências. E, neles, as mulheres não podiam, entre outras atitudes, dançar com uma pessoa mais de uma vez, pois era deselegante. Elas carregavam uma cadernetinha com as danças previstas (valsas, polcas, quadrilhas, contradanças) para anotar os nomes dos homens que a convidavam para dançar, de forma a não repetir o parceiro.  

Todos esses movimentos foram construídos para domar a sociedade e dominar, especialmente as mulheres, usando a etiqueta e os bons costumes como um instrumento de controle social, controle que se estende ao mundo moderno. Então, cabe a nós quebrar esse ciclo, reinventar a etiqueta para que as relações sejam mais sinceras, empáticas e permitam e respeitem a voz de todos. O cirurgião Ivo Pitanguy dizia que podemos traçar a história da etiqueta desde os primeiros núcleos sociais e que o mais agradável no outro deve ser sua sinceridade, sua verdade. Concordo com ele também quando afirmava que a grande missão da etiqueta é procurar o nosso lado mais agradável.  Hoje, a etiqueta deve ser libertadora e não uma arte da artificialidade. 

*Ana Beatriz Prudente é gestora de Economia Criativa, Educadora de Mulheres Empreendedoras, Ativista pelo Empreendedorismo Social com Design Thinking,  Membro da Comissão Permanente de Combate à Covid 19 da Faculdade de Educação da USP e Membro da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.