Enfrentar a cultura negacionista para construir a cultura de transparência, por Amelinha Teles e Ana Beatriz Prudente

Enquanto não o fizermos, não poderemos nos desenvolver como uma sociedade igualitária

Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil
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Por Amelinha Teles e Ana Beatriz Prudente*

Nosso país conta com uma história muito complexa, na qual diversos grupos étnicos participaram da sua formação, mas de forma muito desigual. Assim, muitas relações violentas ocorreram entre esses grupos que fizeram nossa história, como é o caso dos indígenas e dos portugueses. Com a tentativa de escravização por parte dos colonizadores europeus, os povos indígenas que aqui viviam não se entregaram facilmente. Essa resistência provocou inúmeros conflitos e o assassinato em massa de indígenas. De um contingente de aproximadamente 6 milhões no período da invasão portuguesa, passamos para 800 mil indígenas nos tempos atuais (IBGE 2010). Esse extermínio se deu de diversas maneiras, não só apenas a morte física, por assim dizer, mas também por uma postura política e cultural de vulnerabilidade desses grupos étnicos, romantizando sua história, negando-lhes direitos e reduzindo-os a um estereótipo que os aprisiona. 

Apesar de ser um país pluriétnico desde sua origem, o Brasil é constituído por uma desigualdade explícita e um racismo estrutural, no qual os não brancos sofrem mais e têm muito mais dificuldades para conquistar a mobilidade social e a plena cidadania. Um exemplo é a violência policial no Brasil: pessoas não brancas sofrem muito mais abordagens indevidas e estão muito mais suscetíveis a serem vítimas de armas de fogo. Ao longo de nossa história, muitas situações terríveis aconteceram, entre elas, a escravização de pessoas de origem africana no período colonial - do século XVI até 1888.  Mesmo com a publicação da Lei Áurea, não criamos políticas públicas para inseri-las na sociedade. Dessa forma, os negros conquistaram a “liberdade”, mas ficaram à margem e abandonados pelo Estado. O que deu início a grande desigualdade, experimentada até hoje, em relação a outros grupos existentes no país, pois a maioria não conseguiu entrar no mercado de trabalho ou morar nas cidades, encontrando moradias somente em regiões mais afastadas e precárias. A ocupação dos morros cariocas se dá, justamente, a partir daí. 

Passados vários séculos, outro terrível acontecimento que nos deixa marcas até hoje: a Ditadura Militar, cuja duração foi de 1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985. Como consequência por não enfrentar os problemas sociais gerados pelo seu passado violento, o país foi sedimentando diversos traumas. Sem políticas públicas que permitissem que os escravizados libertos, de fato, pudessem se ressocializar, consolidou-se o racismo estrutural no país, onde a população negra não se desenvolve com os mesmos direitos dos quais gozam a população branca. No caso da ditadura, também aconteceu a mesma premissa: não só jovens brancos estudantes foram vítimas desse regime brutal, diversas classes de trabalhadores, associações de diferentes naturezas, além de muitos grupos sociais, que lutaram contra as mazelas do período, foram igualmente perseguidos. Há uma tendência generalizada no Brasil em negar essas situações.

Entre as consequências desse negacionismo está a deturpação de teorias políticas, pois a classe dominante se apropria somente do que interessa, descontextualizando, muitas vezes, esses pensamentos. No entanto, tão logo surgiram no país novas forças conservadoras e autoritárias com propostas bem articuladas para varrer essa história, negando ou insistindo em seu revisionismo. Hoje, há uma série de iniciativas sectaristas, por parte de instituições e figuras públicas, para tentar homenagear o golpe militar.

Contudo, ao negarmos esses fatos, estamos apagando uma grande parte da sociedade, uma parte que lutou contra o status quo, contra a desigualdade estrutural, a violência, que não se calou diante de muitos horrores promovidos pela ditadura. Foram muitos os setores e diferentes grupos que a combateram, entre eles, muitas lideranças emergentes tanto na frente política, como na estudantil, e havia muitas mulheres nessa luta.

Mas, suas trajetórias ainda são silenciadas, a história da repressão feminina contra as mulheres em nosso país é estrutural. A década de 1960 é um marco do enfrentamento feminino por emancipação. Ao se descobrir um meio contraceptivo que proporcionou às mulheres ter relações sem o medo de engravidar, elas foram batalhar por mais autonomia no que diz respeito à sua individualidade e sexualidade. É o que se denomina a retomada do feminismo, a primeira nasceu no fim do século XIX e início do Século XX, com o movimento sufragista, que reivindicava o direito feminino ao voto.  Na década de 60, pregava-se o direito de decisão das mulheres e a democracia dentro e fora de casa.

Esse movimento intenso ocorreu especialmente, de forma mais contundente, durante o golpe militar. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que crescia a repressão e a violência social, as mulheres buscavam seus direitos. E de lá para cá, o segmento populacional com acentuadas mudanças na sociedade brasileira são as mulheres. As desigualdades entre os sexos permanecem até hoje, mas durante a ditadura, as mulheres eram ainda mais. Naquele período, a sociedade passou a ser mais urbana e a população rural foi praticamente excluída do campo, migrando para a cidade. A ditadura nunca promoveu a reforma agrária (que não foi feita até hoje). Esse êxodo alterou a vida de muitas famílias, sobretudo as mulheres, que tiveram que entrar no mercado de trabalho e se escolarizar. Antes dos anos 60, poucas mulheres eram escolarizadas e isso muda totalmente a partir daí.  Na cidade, elas começam a enfrentar como vítimas da violência urbana e de diversas violências sociais, tornando-se mais vulneráveis.  

Outro aspecto visível na época era o fato de que o Brasil se transformava em um grande parque industrial, com a abertura para o capital estrangeiro. Nesse momento, mais mulheres ingressaram no mercado de trabalho, sempre como uma mão de obra barata e explorada. Elas eram, inclusive, controladas em suas idas ao banheiro e, por vezes, assediadas pelos patrões.

Assim, muitas passaram a não aceitar essas situações. Originaram-se, então, diversos grupos que lutaram contra essas condições, como associações clandestinas e movimentos sociais nas periferias, além de outras iniciativas em universidades. As diversas organizações clandestinas foram as que desenvolveram ações políticas mais contundentes e, por isso, muitas mulheres participantes foram perseguidas, presas e desaparecidas pelo regime. 

Mas, havia ainda um grupo que lutaram pela creche, pela saúde, pela moradia e criaram em São Paulo um movimento chamado de Movimento do Custo de Vida, com o intuito de melhorar a vida das famílias que mais sofriam com o aumento de preços. Todas elas, assim como sindicalistas, universitárias e mulheres negras foram apagadas e silenciadas também, dificilmente são lembradas hoje.  Porque elas, assim como os presos e desaparecidos durante a ditadura, não existem para uma parte autoritária de nossas lideranças políticas atuais.

Esse negacionismo histórico da ditadura e a insistência em não a enfrentar é, justamente, o fator que mais atrapalha a construção de uma cultura de transparência no Brasil, transparência por parte dos poderes públicos. É um resquício amargo, difícil de digerir.

*Ana Beatriz Prudente é membro do Comitê Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP, educadora de mulheres empreendedoras e gestora de economia criativa nos meios rural e urbano.
*Amelinha Teles foi militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Presa em 28 de dezembro de 1972, foi levada à Operação Bandeirantes (Oban), onde foi submetida a sessões de torturas, que segundo seu depoimento foram realizadas, pessoalmente, pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi de São Paulo.
Seu marido César Augusto Teles e seu companheiro de militância Carlos Nicolau Danielli também foram levados ao órgão de repressão. Amelinha testemunhou o assassinato de Danielli. Seus filhos, Edson e Janaína, com 4 e 5 anos de idade, também foram sequestrados e levados à Oban, onde viram os pais serem torturados. Feminista, participou do Jornal Brasil Mulher na década de 1970.
Ela é um ícone do feminismo na América Latina. Diretora da União de Mulheres de São Paulo, coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares, integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Em 2005, a família Teles moveu uma ação declaratória contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, que em 2008 foi o primeiro agente da ditadura a ser declarado torturador.

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.