Globo e a história vai registrar aqueles que se omitiram...

Murilo Ramos: "Como injusto seria deixar de reconhecer o seu papel político conservador, quando não abertamente reacionário, no jornalismo"

Reprodução/TV Globo
Escrito en DEBATES el

Por Murilo Ramos, professor da Unb

1. Prólogo

“Mas a história vai registrar aqueles que se omitiram. Os que foram negligentes. Os que foram desrespeitosos. A história atribui glória e atribui desonra. A História fica pra sempre.”
Jornal Nacional, Editorial, 20 de junho de 2020.

As redes sociais foram invadidas ontem por essa frase final do editorial, com o qual William Bonner abriu o Jornal Nacional, a propósito da marca superior a 50 mil mortos por covid-19, e do descaso do governo para com a pandemia.

  1. Sobre a Globo e sua história

Na segunda semana de março, minha família e eu, como, naquele momento, milhares, até milhões de brasileiros, compreendemos a gravidade da doença que chegava, cuja defesa única era, como é até hoje, o distanciamento semanal.

Naquela mesma semana, na segunda-feira, 15 de março, iria comprar passagem para o Rio de Janeiro, com a intenção de começar uma bateria de entrevistas para um livro que pretendia fosse publicado no segundo semestre de 2021, cujo nome provisório era: “Globo – uma biografia política”. Meu primeiro entrevistado, com quem já havia falado, seria o jornalista Janio de Freitas, ator e testemunha importante do período pelo qual começaria as entrevistas. Mas, naquela segunda, para meu desalento, compreendi que o projeto estava suspenso, sem horizonte de prazo para ser retomado.

Dito isso, em alusão ao meu projeto interrompido, o editorial do JN me despertou a vontade de compartilhar aqui uma reflexão a propósito da TV Globo, do Grupo Globo, à luz da História, e de como ele vê sua própria história, no caso, sua história política.

Faço essa diferenciação porque a TV Globo, pra ficar com o pilar principal de sustentação de todo o Grupo, não é, nem nunca foi apenas o Jornal Nacional e seus demais programas jornalísticos, os canais preferenciais pelos quais sempre fluiu e flui a sua história política. Já fui durante um bom tempo ávido consumidor da teledramaturgia da Globo – Irmãos Coragem; Escalada – que trazia a construção de Brasília, como pano de fundo; Selva de Pedra; Roque Santeiro, naturalmente; Ossos do Barão; a genial, e fracassada, meta-novela Espelho Mágico, em que Glória Menezes e Tarcísio Meira interpretam um casal de atores tais quais Glória Menezes e Tarcísio Meira; os Casos Especiais, por autores como Guarnieri e Vianinha, este de quem ganhamos A Grande Família; o humor incomparável de Chico Anysio e Jô Soares; os musicais, etc. Não reconhecer o papel cultural da Globo, vanguarda em muitas ocasiões, seria injusto.

Como injusto seria deixar de reconhecer o seu papel político conservador, quando não abertamente reacionário, no jornalismo.

O Grupo Globo, a partir de TV Globo, em meados dos anos 1960, se fez frequentemente à margem da lei.

Começando pela tramoia com o grupo americano Time-Life, uma sociedade mal disfarçada, feita ao arrepio da Constituição Federal. Aqui rendo homenagem a Daniel Herz, meu primeiro orientando de pós-graduação, de cuja dissertação saiu o seminal trabalho A História Secreta da Rede Globo. Nele está relatada com em detalhes o arranjo inconstitucional de Roberto Marinho, para aportar capital estrangeiro na sua operação de televisão, que resultou em uma CPI, relatada pelo Deputado Djalma Marinho e presidida por Roberto Saturnino, cujo nome só voltou a ser citado em o Globo, Rádio Globo, TV Globo quando, em 1985, foi eleito prefeito do Rio de Janeiro. Apesar das evidências colhidas pela CPI, instalada em 1965, no final de 1967 a ditadura militar, já no governo de Costa e Silva, interpretou a sociedade, nos termos postos pela Globo, como um acordo de ‘assistência técnica’, e o assunto morreu.

Estava dada ai a senha do que seria a atuação da Globo em termos institucionais até os dias de hoje: a de impedir, ao arrepio de tudo o que já se tinha feito nos países capitalistas centrais, dos Estados Unidos à Grã-Bretanha, Alemanha, França, Portugal, Espanha, países nórdicos, etc, que o Brasil tivesse uma legislação que regulamentasse a televisão e o rádio, tanto do ponto de vista concorrencial e de mercado, quanto, sobretudo, o de suas responsabilidades éticas, jornalísticas, sociais e culturais.

Foi isso o que permitiu que a Globo: a) tentasse por impedir, por fraude eleitoral, a eleição de Leonel Brizola ao governo do Rio de Janeiro, em 1982, no que ficou conhecido como o Escândalo da Proconsult, exposto em detalhes meses depois, em uma entrevista à Playboy, por Homero Sánchez Icaza, na época o guru das pesquisas da audiência da Globo; b) boicotasse de forma escandalosa a Campanha das Diretas, em 1983, até que a pressão popular a fizesse mudar de direção; d) distorcesse seus noticiários, na eleição presidencial de 1989, para impedir a eleição de Brizola, primeiro, e de Lula, depois; sendo que, no caso de Lula, o mais marcante foi a edição do debate com Fernando Collor, no segundo, customizado pessoalmente por Roberto Marinho, para favorecer Collor em detrimento de Lula; d) mais episódios menos visíveis, porém não menos importantes, quanto à luta que empreendeu contra a classificação indicativa para programas de TV, destinada à proteção da infância e adolescência; a hegemonia sobre a destinação com bônus de veiculação para a publicidade, etc etc.

  1. Epílogo

Então, quando William Bonner, Carlos Augusto Schroeder, Ali Kamel, e quem mais de direito se investe do direito de nos dar lições de História, o que posso dizer é que antes disso se voltem para as entranhas da sua própria empresa, para o Globo Memória, e lá corrijam omissões, negligências, desrespeitos, para evitar a desonra de quem se atribui glórias indevidas. Porque, como vocês mesmos disseram, a História fica pra sempre.