Guerra Civil Brasileira (I): O inquestionável dogma do mercado – Por Cristiano Abreu

O discurso das “elites” tornou-se um dogma, uma doutrina sagrada: o dogma do Liberalismo, o sacralizado neoliberalismo, criado por uma mídia monopolista, oligárquica, que impôs ao país a ditadura narrativa do “livre mercado”

Ministro da Economia, Paulo Guedes, faz arminha com as mãos durante evento. (Foto: Reprodução)
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Por Cristiano Abreu *

“O Brasil é um Estados Unidos em que o Sul ganhou a Guerra”

Darcy Ribeiro[1]

Em 2021 estamos num Brasil exausto, não só pela pandemia, mas pela interminável crise política iniciada em 2016. Ou melhor, em 2014, com a não aceitação da derrota por Aécio Neves (para não recuarmos até 2013). Antecipando Trump de 2021, aquela ruptura com o pacto político, era o início de uma derrocada para o Brasil, que ainda não chegou ao fim. A Nova República começou com a vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral e se encerra com a derrota de seu neto Aécio, e sua negação em reconhecer as urnas. Desde então, há uma crescente cisão narrativa da realidade rachando famílias e amizades, colegas e vizinhos. Tal racha interpretativo do real precisa ser encarado e discutido, pois a cisão absoluta das ideias leva ao distanciamento dos corpos e dos mundos. As guerras se iniciam nas ideias e palavras, e daí podem levar não apenas à separação de pessoas, mas de territórios. 

Um golpe, sabe-se como começa, não como termina. Estamos nesse início de 2021 num esgotamento da narrativa golpista no centro dinâmico da sociedade. Nas milícias golpistas (civis, militares ou midiáticas) é claro que a energia é infinda. Mas no grosso da sociedade, o clima é de cansaço extremo. O desgoverno Bolsonaro jogou o Brasil numa guerra híbrida permanente, exaustiva e desumana.

Em eleições normais, a aberração bolsonarista não ganharia. Em certa medida há neste fenômeno político a estratégia de deslocar o centro dinâmico o mais à direita possível, para num pós-Bolsonaro haver um “compromisso direitoso”. O problema é que os que estão no campo conservador, da Globo até Bolsonaro, querem desenhar como um “compromisso” um pacto econômico ultraliberal, à la Paulo Guedes, e um “pacto” político antipetista. Esses dois pontos, caso sejam mantidos, são a chave para uma guerra civil permanente: são um não compromisso, de tão irrealista e negacionista da História brasileira.

O Inquestionável Dogma Sagrado do “Livre Mercado”

O discurso das “elites” tornou-se um verdadeiro dogma, uma doutrina sagrada: o dogma do Liberalismo, o sacralizado neoliberalismo, criado por uma mídia monopolista, oligárquica/familiar, que impôs ao país a ditadura narrativa do “livre mercado” como dogma. Mais de 30 anos de TVs e rádios em que todos os articulistas têm as mesmas “opiniões”.

Hoje estamos sob o coronavírus, que obriga a um neokeynesianismo pandêmico, com reversão industrial em toda parte. Ironias da História. Mas os fundamentalistas em economia não dão o braço a torcer. Nisso, Guedes, Bolsonaro, Globo/Huck/PSDB, enfim, todos seguem fundamentalistas na adoração ao “mercado”. Lorde Keynes, de forma sintética e genial, disse: “mudam as condições, eu mudo de opinião”. Pois no totalitarismo econômico, anti-intelectual, compartilhado da Globo a Bolsonaro, as condicionalidades históricas objetivas, como pandemias globais, guerras, ou catástrofes naturais, não são o bastante para reverem seus dogmas econômicos: o dogmatismo liberaloide é mais importante do que qualquer fato da realidade.

Um país de 210 milhões de habitantes não pode prescindir de uma base industrial com certa diversidade, como a falta de insumos para a saúde nos mostra, reduzindo o país a um exportador de commodities, como a distopia liberaloide dos fanatizados “guedianos” busca. É inviável o Brasil vivendo de soja e ferro, com todo seu povo uberizado. Isso não é realista.

Como não é realista um Brasil sem seu maior partido: o PT. Óbvio está de que a saída para o Brasil é política, com debate, discussão e troca de ideias. Mas a honestidade intelectual é ausente de um lado do Brasil atual, que só fala de uso de força, que odeia debater, odeia a democracia, a política. Lógico que o debate precisa ser feito com a parte da sociedade que compõe o centro dinâmico, a parte que pode debater, e é maioria, não com os extremistas hidrófobos. O problema é que este centro dinâmico foi envenenado por um discurso antipolítico, cuja bizarra síntese máxima é o fenômeno do antipetismo. Negando a história do Brasil, que elegeu quatro vezes esse partido para a Presidência, querem riscar da História a agremiação política que esteve em todos os segundos turnos presidenciais desde a redemocratização, em 1989. O partido que Eric Hobsbawm chamou de “o último grande exemplo de partido socialdemocrata de massas”, e Perry Anderson de “simplesmente o primeiro e único partido moderno brasileiro[2]. Isso é como querer um pacto político na Argentina sem o peronismo. Não é realista. É como querer o Brasil sem o samba. Mas a agenda golpista assim delira, fraturando o Brasil numa guerra híbrida contra suas tradições políticas, históricas, culturais e religiosas. Há uma guerra cultural sobre o Brasil de dimensões abissais, que fratura a sociedade, buscando sua descaracterização, ou mesmo o fim da união nacional.

O grande problema da “hegemonia petista”, é que ela foi uma hegemonia eleitoral, e em parte social, mas só. Jamais foi uma hegemonia econômica, não conseguindo penetração nas elites endinheiradas e, sobretudo, que não teve hegemonia política do aparelho estatal. Para desgraça do Brasil, faltou hegemonia ao PT.

Combater a hegemonia petista foi combater o desenvolvimento nacional brasileiro

Todos os países do mundo, que se desenvolveram, o fizeram graças a um longo período de hegemonia de um grupo político. Seja os EUA pós-Guerra Civil, com o partido republicano de Lincoln, que de 1860 até 1912 passou só dois mandatos presidências fora da Casa Branca. Não por acaso foi neste período que este país se torna a maior potência industrial do mundo, com seus famosos trusts, num capitalismo monopolista que vem até hoje muito parecido, sedento de guerras e azeitado com muita corrupção[3]. Seja a França do general de Gaulle nos “trente ans glorieuses”, ou os socialdemocratas na Suécia. A hegemonia política é condição necessária para o salto desenvolvimentista. O estruturado Partido dos Trabalhadores no Brasil provou ser o mais forte e coordenado grupo político para dirigir o salto de um desenvolvimento econômico inclusivo no Brasil. Fazendo o que a burguesia brasileira foi incapaz. Muito curiosa a força da repetição, cheia de ódio, contra a “hegemonia petista”. Pois seria justamente tal hegemonia o mais viável caminho para o desenvolvimento do Brasil, que todos dizem querer. A repetição lobotômica foi uma construção midiática orwelliana, assustadoramente bem sucedida. Setores médios e até populares repetindo adestrados que são “contra o PT e sua hegemonia”, será um caso de estudo de como as pessoas podem, idiotizadas, lutarem contra seus próprios interesses.

Nenhum país enriqueceu sem brigar e incomodar. A Alemanha passou por duas guerras mundiais, e o Japão recebeu duas bombas atômicas. Foi muita ingenuidade do PT e dos grupos progressistas crerem que alcançaríamos algum desenvolvimento sem brigar, sem estratégia e inteligência nacional. E cabe aqui um irônico olhar a tantos intelectuais de esquerda, que passaram (muitos seguem nesse delírio) as duas primeiras décadas do século XXI analisando a “decadência americana”. Se existe uma decadência para nos preocuparmos, seria a nossa, a brasileira.

Países também podem acabar. Iugoslávia, Sudão, e mesmo a Síria, nos mostram isso. No primeiro ano do desgoverno Bolsonaro, a revista Foreign Policy publicou uma curiosa ficção distópica: Os EUA de 2025, no qual Trump havia sido reeleito, com Bolsonaro no Brasil incendiando tudo. Nesta ficção, um candidato muito à esquerda, para os padrões norte-americanos, ganha a Casa Branca em 2024, e uma guerra para libertar a Amazônia da destruição bolsonarista ocorre no ano seguinte[4], com a maior floresta tropical do mundo sendo ocupada. Assim, o capitão expulso do exército, que comemora o 4 de julho no Palácio do Planalto, sempre enrolado em bandeiras de Israel e dos EUA, nessa ficção, teria levado o Brasil ao fim de sua união física, à secessão.

Seriam Jair Bolsonaro e seus filhos agentes de grupos e/ou países estrangeiros?

Tal ficção deve ser vista com muita atenção. Realmente, não parece impossível que o clã Bolsonaro, e seu grupo, sejam agentes que, no limite, buscam uma secessão do Brasil. Bolsonaro vai contra a União. Trabalha para o caos e a falência da saúde, sabota o SUS, e potencializa a mortandade em plena pandemia. Consolidando seu desgoverno como responsável por genocídio deliberado do povo brasileiro: Bolsonaro parece levar a cabo no país um plano de eugenia na pandemia, com seu racismo antibrasileiro. Matando a população. O próprio povo que este traidor tinha que defender. Cria, propositalmente, caos na saúde e no pacto federativo, sabotando as políticas dos estados (já que o governo federal não tem plano de combate à pandemia, além de ministrar cloroquina), jogando estados contra a União, rachando a federação. Seu sectarismo histriônico, anticientífico, já passou há muito de todos os limites. Não é “folclórico” é criminoso.

Brincar com o Mistério da Saúde nessa pandemia, deixando o cargo de ministro vago por semanas e trocando o chefe da pasta três vezes, gastando muito menos do orçado no setor[5], configuram crime de genocídio (o Brasil tem 3% da população mundial e 15% dos mortos por Covid-19).[6] De fato, Bolsonaro e seu grupo são traidores de qualquer ideia de brasilidade, são irracionalistas anticientíficos, cujo extremismo de direita é o fim de qualquer diálogo político possível. São a talebanização evangélica levada ao poder, com pessoas que deveriam estar em hospícios dirigindo a Esplanada dos Ministérios. Não é absurdo inferir que eles sejam de fato funcionários de agencias externas. Ou, na “melhor” das hipóteses, são “só” psicopatas fanatizados, fundamentalistas loucos, que transformaram uma inevitável pandemia, num genocídio em massa deliberado, digno de um ritual satânico à la Jim Jones, com o qual este desgoverno tanto parece[7]. As instituições e pessoas que ainda têm um mínimo de racionalidade e respeito pela dignidade humana no Brasil precisamos fazer um levante civilizacional contra a barbárie bestial militante que tomou Brasília.

O maior absurdo disso tudo é a paralisia vergonhosa da parte pensante, ainda majoritária (?), da sociedade brasileira, que sofre uma guerra contra todas suas bases civilizatórias, quieta demais. Já passa da hora de um levante civilizatório contra este grupo antipolítico, antirracional, anticientífico, racista antibrasileiro e, no limite, genocida criptosatânico, que são os bolsonaristas.

Os incêndios sem fim na Amazônia podem gerar novas pandemias[8], criadas no Brasil por este desgoverno criminoso, e sua estúpida política de desmatamento, que não por acaso, já atiça um debate pelo controle internacional da Amazônia por potencias como França e EUA[9], tal como a “ficção” da Foreign Policy antecipou.

Enfim, a situação mais extremada seria esse grupo de psicopatas traidores conseguirem destruir a própria unidade territorial brasileira, já que a unidade do Brasil, que ouso chamar de espiritual, parece ter sido irremediavelmente quebrada. O Brasil tem se mostrado mais forte do que imaginávamos. Mesmo sendo avacalhado institucionalmente por dentro todos os dias, o país mostra-se forte e a chance de sua unidade ser quebrada por esses traidores extremistas é remota. Ainda que possível e esteja no horizonte de intenções desse grupo de genocidas traidores, racistas anti-Brasil.

O mais provável que Bolsonaro consiga é um fracionamento interno, com as milícias. Ele concede recorrentes benefícios e gratificações aos de mais baixa patente das Forças Armadas e polícias, de forma clientelista, para estruturar uma ralé miliciana dentro delas, quebrando as hierarquias militares. Bolsonaro não é militar: é miliciano. Persegue militares avessos a aventuras e comprometidos com o pacto federativo e a legalidade. Ele estimula o levante de uma ralé miliciana dentro das forças de segurança (vide Ceará). Ele combate a ideia de monopólio estatal da violência, buscando uma descentralização da capacidade de matar, jogando o Brasil numa violência aberrante, num neofeudalismo militar, fracionando o território.

Combatendo o Estado, busca a privatização mafiosa da violência. O que fará de todo o Brasil uma favela dos 1970/80 (território sem Estado presente), em que milícias se matam, disputando espaços para o alcance de seus interesses corruptos sobre produtos e serviços sem fim, como velhas “bocas de fumo” brigando por serviços não regulados pelo Estado. O modelo dele é a Colômbia dos anos 1980. Não viraremos uma Venezuela, viraremos uma Colômbia com Bolsonaro. Curioso como, orwellianamente, tais extremistas adoram acusar os oponentes do que de fato fazem. O discurso anticomunista sempre adorou apontar o Camboja de Pol Pot como amostra do que o fundamentalismo ideológico pode causar. Hoje a criatura mais histericamente anticomunista já posta no Planalto trabalha avidamente para massacrar o povo brasileiro. Com seu fundamentalismo econômico para privatizar o SUS, ou destruir estoques reguladores para aumentar a fome no Brasil, e catalisar o genocídio para o qual trabalha.  

*Cristiano Abreu é historiador, mestre e doutorando em História Econômica pela USP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/171/entrevistados/darcy_ribeiro_1991.htm

[2] SECCO, Lincoln. História do PT. Ed. Ateliê Editorial, 2011, Cotia,SP. Pg:256.  

P. Anderson, “Lula’s Brazil”, London Review of Books, março de 2011,

[3] DEBOUZY, Marianne. Le Capitalisme “Sauvage” aux États-Unis. Ed. Seuil, 1972.

[4] https://foreignpolicy.com/2019/08/05/who-will-invade-brazil-to-save-the-amazon/

[5] https://www.brasildefato.com.br/2020/07/13/governo-executou-menos-de-50-do-orcamento-da-covid-segundo-plataforma-do-senado  http://www9.senado.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=senado%2Fsigabrasilpainelcidadao.qvw&host=QVS%40www9&anonymous=true&Sheet=shOrcamentoVisaoGeral

[6] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55481551

[7] https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/mundo/64055/revista-dos-eua-compara-bolsonaro-a-jim-jones-autor-do-massacre-de-jonestown

[8] https://amazonia.org.br/2020/04/desmatamento-acelerado-na-amazonia-pode-levar-a-proxima-pandemia/

[9] https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/12/04/paris-peut-compter-sur-un-allie-a-washington-pour-faire-avancer-l-agenda-climatique-au-bresil_6062233_3232.html