Guerra Civil Brasileira (II): Ralé empoderada – Por Cristiano Abreu

A base eleitoral (de todas as classes) de Bolsonaro finge não ver o absurdo de colocarem na Presidência um capitão de pornochanchada

Foto: Bolsonaristas ameaçam enfermeiras que protestam contra o governo durante a pandemia, na Praça dos Três Poderes, em Brasília (redes sociais)
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Por Cristiano Abreu *

As criminosas falas surreais deste senhor posto na Presidência são o latir hidrófobo de um ressentido perigoso, expulso do Exército por planejar explodir bombas em quarteis[1], que fala no Parlamento como se fosse um moleque de 12 anos riscando absurdos em portas de banheiro, com obsessões fálicas. Sua fala, puramente negativa, é a expressão de um ressentido que alimentou a onda de ódio dos ressentidos que são seus apoiadores. Gente que odeia política, odeia ler, odeia quem estuda, odeia ver outros se organizarem, se ressentem dos outros melhorarem, se sentindo injustiçados e culpam os outros por seus fracassos (culpam petistas, sindicalistas, feministas, LGBTIs, movimento negro...). Seus apoiadores são o grito infantil de adultos revoltados, sem projeto propositivo, mas apenas destrutivo. São uma ralé[2]. O termo ralé aqui é recuperado de Hannah Arendt. Sempre o achei complicado, mas nada como um termo complicado para explicar uma realidade bem complicada.

Ralé aqui nada tem a ver com pobreza. A “elite” brasileira é uma ralé, pois é ignorante, revoltada e ressentida (inclusive por ser brasileira e não estrangeira). Não tem consciência nem autonomia como classe, sendo reflexiva e colonial em seus sonhos associados e dependentes. Com uma “elite” dessa, tal espírito de ralé tem empesteado o Brasil, de cima a baixo. Colonizada, tal elite propaga uma estética do consumo, enquanto combate qualquer ética do trabalho. O que Max Weber viu na ética protestante, na história europeia, como estruturação de uma ética do trabalho na modernização capitalista, na história do Brasil e da América Latina quem fará serão os movimentos trabalhistas. Quem defende e dá base para uma ética do trabalho no Brasil é o Trabalhismo, é o PT. Para ironia da história, o avanço dos evangélicos no Brasil fortalece a reprodução do discurso elitista, liberaloide, da estética do consumo, combatendo o trabalhismo e a ética do trabalho.  Essa “Reforma” como farsa na sociedade brasileira reforça o espírito de ralé e combate a modernização e o fortalecimento do trabalho, levando os evangélicos em peso ao antipetismo e ao voto no capitão necrófilo, um anticristão em tudo. Mas os “moralistas” evangélicos votaram em peso no capitão de pornochanchada, com sua verborragia de porta de banheiro. Tal como a imensa maioria dos médicos do Brasil, que desprovidos de qualquer formação humanista e fanatizados pelo antipetismo, votaram neste ser anticientífico, traindo assim seu juramento de Hipócrates.   

A base eleitoral (de todas as classes) de Bolsonaro finge não ver o absurdo de colocarem na Presidência um capitão de pornochanchada.

Bolsonaro ser derrotado é questão de vida ou morte para o povo brasileiro. Contudo, está sendo novelizado um antagonismo da direita com a extrema direita, algo como Bolsonaro contra Dória, ou contra Huck. Claro que contra o bestialismo bolsonarista qualquer coisa é melhor. Mas para construir um futuro de nação, um compromisso político para uma outra República, tais grupos seguem o mesmo dogma em economia que Guedes e Bolsonaro, e se puderem, destroem o SUS.

Guerra Civil permanente ou pacto republicano neodesenvolvimentista

Para reconstruirmos o Brasil é preciso um pacto republicano neodesenvolvimentista, dialogando com as tradições do país, construindo um “compromisso”. A história do desenvolvimento do Brasil, que é republicana, está sendo jogada no lixo e precisa ser recuperada, enquanto o estagnacionismo liberal, que tem seu paraíso perdido no escravista Império do Brasil, período de estagnação paquidérmica de nossa história econômical, é o plano que vai se impondo hoje, indo contra nossas tradições republicanas. Mesmo o golpe de 1964, que veio com o objetivo de destruir o Varguismo e o Trabalhismo, não destruiu o Estado modernizante. O regime não seguiu a trilha da desindustrialização de Videla, na Argentina (1976), e Pinochet no Chile (1973). Os governos do Regime Militar (1964-1985) variaram em torno de dois trilhos: um mais liberal em economia, e outro mais intervencionista/desenvolvimentista. Apesar de haver ruídos complicadores nessa simplificação, o próprio primeiro governo (Castelo Branco), considerado mais liberal, foi o implementador de um plano de poupança compulsória dos trabalhadores para financiar a expansão habitacional (num período de crescimento populacional e urbano explosivo no Brasil), que era cópia do plano pretendido por João Goulart (e barrado pela UDN no Congresso), que tinha sido explicado por Ignácio Rangel para um parlamento que o barrou em 1963, para vê-lo passar em 1964 já sob os militares[3]. Era a criação do FGTS[4] e do BNH. Logo, um plano, identificado como um sucesso do período militar, foi em verdade um plano vindo do PTB, roubado e levado a cabo pelos militares, sob seu presidente “mais liberal”.

Os que têm “saudades” dos anos do “milagre econômico”, e identificam isso com “os militares”, não sabem que eles têm saudades do estado desenvolvimentista que os militares não mataram. Essa agenda dentro da Ditadura Militar viveu seu auge no II PND de Geisel, que também começou a abertura. Contra a abertura e o estado ativo na economia se levantou um grupo liderado por Silvio Frota: grupo mais “liberal” em economia, e politicamente muito mais repressivo e violento. Geisel vence e Frota é exonerado[5].   

Bolsonaro é herdeiro de Frota, antinacional em economia e hidrófobo em política. Bolsonaro é um ressentido desprezado até pelos militares profissionais[6], e degrada todas as instituições do Brasil, incluindo as militares. Talvez, para buscar apoio do centro dinâmico mais à direita, a defesa de um pacto contra a miliciana quebra de hierarquias militares e a ultra liberalização em economia pudesse também ser chamado de pacto geiselzista. Sei que apanharei de milhares na esquerda por sugerir isso, mas precisamos falar pra fora e reconquistar o centro dinâmico na sociedade. E mostrar que Bolsonaro é herdeiro de Silvio Frota e da ralé do porão dos torturadores, que sempre criticou o “comunismo” do governo militar. Tal estratégia pode trazer muitos simpáticos à memória do Regime Militar para o nosso lado republicano. Além do que, a esquerda precisa conversar com as Forças Armadas. Poucos nela, como Aldo Rebelo e José Genoíno, o fizeram. As FFAA querem uma República unificada, num pacto político/econômico em que o povo caiba, ou vão apoiar o Brasil virar uma rachada e escravista confederação miliciana, que é o projeto bolsonarista?

Para sairmos dessa catástrofe, um pacto republicano neodesenvolvimentista é a saída. E é explicando como tal tradição em política econômica foi a chave para o crescimento econômico que faremos com que as pessoas escutem e relativizarem tanto ódio e preconceito induzido nelas. Pois o golpe segue em marcha, e a Guerra Civil que se colocou no Brasil pode ter muitos epílogos. Inclusive um banho de sangue, feito pelo único lado verdadeiramente armado e idólatra da violência. Para desarmar esse gatilho, assim como o gatilho do “Estado mínimo” (para os pobres só), que sucateia o SUS, estimulando o genocídio do povo brasileiro, desarmar o gatilho do massacre econômico proposto pelo estagnacionismo liberal... A verdadeira arma do lado republicano, abolicionista e unionista dessa guerra são as ideias, as palavras lógicas. Ou, como dizia o lema de campanha do deputado petista e professor da USP Florestan Fernandes, “contra as ideias da força, a força das ideias”.

*Cristiano Abreu é historiador, mestre e doutorando em História Econômica pela USP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2020/06/03/terrorista-e-bolsonaro-que-foi-preso-e-processado-pelo-exercito.htm

[2] ARENDT,Hannah. The oringins of Totalitarianism. Ed. Harvest Book,

[3] RANGEL, Ignácio. Economia: Milagre e Antimilagre. 1985 Ed. BNDS. Obras Reunidas: Os Desenvolvimentistas. Pg, 709.

[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/05/05/em-1967-fgts-substituiu-estabilidade-no-emprego

[5] http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=3&ved=2ahUKEwjNuZ6uu6feAhXDQpAKHRFPCDQQFjACegQIBxAC&url=http%3A%2F%2Fmemoria.bn.br%2Fpdf%2F030015%2Fper030015_1977_00188.pdf&usg=AOvVaw3nBOmPPE1pTPI4-Wt6rry8

[6] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/nem-geisel-suportava-bolsonaro-um-mau-militar-completamente-fora-do-normal-por-kiko-nogueira/?fbclid=IwAR0phBA6W0t4WvMeN3B-fPD9JFUaT72l02EEAkGTPaZO8SzTKtoTHMR1eQU