Iconomia, por Gilson Schwartz

"O crescimento das tendências mais conservadoras e do populismo de viés fascista faz parte desse movimento em que as classes médias ficam asfixiadas pela redução do crescimento econômico, as classes populares caem na miséria ou no desemprego crônico enquanto as elites acionam todas as suas esferas de influência para impedir a distribuição da renda"

Gilson Schwartz (Reprodução)
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Por Gilson Schwartz*, no A Terra é Redonda Nosso alerta incide sobre o principal equívoco do debate econômico e político brasileiro: centrar a polêmica, tanto à esquerda quanto à direita, sobre o contraponto Estado x mercado na superação da nossa crise de crescimento. Na imprensa ganha cada vez mais destaque essa oposição. De um lado, estão economistas e políticos que insistem na tese de que para retomar o crescimento econômico o Brasil precisa melhorar sua competitividade e produtividade, ou seja, precisa melhorar o lado da oferta, reduzir burocracias, reduzir o papel do Estado, deixar a livre-iniciativa puxar o crescimento econômico. De outro, estão os que defendem uma ostensiva e intensiva retomada do crescimento econômico por meio de estímulos à demanda, principalmente liberando o Estado para gastar mais, investir mais, gerar mais empregos e transferir renda, portanto rompendo a chamada “regra de ouro” do gasto público no Brasil. Para isso, é necessário mudar a Constituição ou conseguir no Congresso Nacional uma autorização para liberar mais crédito para o governo pagar as despesas. Sem essa autorização, o governo voltaria a usar artifícios criativos para pagar as despesas, situação que serviu de pretexto para o impeachment da presidenta Dilma Roussef. Ou seja, a “regra de ouro” do Orçamento está prevista na Constituição Federal e é um mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários, benefícios de aposentadoria, contas de luz e outros custeios da máquina pública. Quando a regra é descumprida, os gestores e o presidente da República podem ser enquadrados em crime de responsabilidade. É para não descumprir a regra que o governo Bolsonaro solicitou que o Congresso aprove um crédito suplementar de R$ 248 bilhões para o governo pagar despesas essenciais – a serem obtidos com a emissão de títulos do Tesouro. Na prática, é uma solução temporária para não violar a lei ou ter que congelar despesas essenciais e agravar a crise econômica do país. Como na política, na economia (ou seja, na política econômica) essa polarização esclarece pouco e polariza muito. A questão central no mundo capitalista em crise, hoje, não é mais a oposição moribunda entre Estado e mercado, mas principalmente a reavaliação das relações entre crescimento econômico e distribuição de renda. A recuperação do crescimento e a formulação de novos modelos de desenvolvimento humano depende da urgente reversão da tendência de longo prazo à concentração de renda. O economista francês Thomas Piketty, célebre por conta de sua obra, de 2013, O capital no século XXI (Rio de Janeiro, Intrínseca) em que denuncia a concentração de capital ao longo da história, volta ao tema em livro publicado na França agora em setembro, com o título bastante sintético Capital e ideologia. Sua tese central é que a desigualdade não é econômica ou tecnológica, mas sim ideológica e política. Na medida em que o sistema capitalista produz desigualdade, suas elites formulam doutrinas para justificar a desigualdade. Por exemplo, a ideia de que a acumulação de riqueza é uma questão de mérito, não de poder, ou seja, os mais inteligentes criam suas oportunidades e, portanto, cobrar impostos dos mais ricos, tributar seu patrimônio, seria um desserviço ao crescimento econômico e à liberdade dos indivíduos. Ou seja, não foi por acaso que o neo e até o ultraliberalismo ganharam, a partir dos anos 1980, tanta força na mídia, na imprensa, enfim na ideologia propagada pelos sistemas de informação e comunicação, inclusive e especialmente na internet. São os mais ricos, os mais educados, os mais privilegiados, as grandes corporações que controlam vastas massas de capital tecnológico, industrial e financeiro que defendem uma ideologia que transforma o Estado em demônio, a corrupção em origem de todos os males, as políticas públicas e a própria esfera pública em domínios de preguiçosos, desocupados ou comunistas. Brasil: desigual e injusto O crescimento das tendências mais conservadoras e do populismo de viés fascista faz parte desse movimento em que as classes médias ficam asfixiadas pela redução do crescimento econômico, as classes populares caem na miséria ou no desemprego crônico enquanto as elites acionam todas as suas esferas de influência para impedir a distribuição da renda (que fica ainda mais concentrada quando a economia cresce pouco ou entra em recessão). As pesquisa da equipe de Piketty mostram isso claramente, inclusive para o Brasil. Encontram nessa dinâmica perversa de crise e concentração de renda uma das explicações para o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro. Sua base social e eleitoral é constituída, principalmente, por uma classe média ressentida e por uma elite bastante articulada para defender seus privilégios como se fossem algo natural. A obra de Piketty e seu time (dezenas de economistas coletando e analisando dados sobre a evolução da desigualdade no mundo) marca uma época. É uma resposta racional, científica, analítica para o jogo ideológico que faz da oposição entre Estado e mercado uma chave de interpretação que serve a interesses muito específicos de uma elite paranoica. Esse é o mundo da “iconomia”. Os fenômenos da economia, as tendências do crescimento e as opções de política econômica não resultam de uma suposta ciência dos mercados que funcionam segundo a “mão invisível”. São o produto direto de ideologias que nascem para justificar privilégios e evitar que justamente durante a crise os mais ricos percam renda, patrimônio e propriedades. Mas o capitalismo, que produz a desigualdade, encontra limites ao seu próprio desenvolvimento se a concentração e centralização de capitais e poderes ultrapassa os limites  da sustentabilidade. Isso vale para nossa relação com a natureza, com os mais pobres e excluídos, com os imigrantes e com as minorias. Quanto maior a desigualdade, menor a viabilidade da economia de mercado numa sociedade democrática. Daí a popularidade do populismo cujo símbolo maior é a “arminha” na mão. Aviso de incêndio A crise do crescimento econômico no Brasil e no mundo é produto de ideologia e não de problemas tecnológicos, da corrupção ou da insuficiência e ineficiência da produção e do mercado. Economistas à esquerda e à direita, que nos últimos tempos continuam polarizando o debate em torno do confronto entre oferta e demanda, mercado e Estado, continuam presos a uma agenda ultrapassada. Está na hora de prestar atenção ao alerta do economista francês Thomas Piketty. Seu novo livro Capital e ideologia mostra de que forma o capitalismo, que produz a desigualdade, encontra limites ao seu próprio desenvolvimento se a concentração e centralização de capitais e poderes ultrapassa os limites  da sustentabilidade. Isso vale para nossa relação com a natureza, com os mais pobres e excluídos, com os imigrantes e com as minorias. Quanto maior a desigualdade, menor a viabilidade da economia de mercado numa sociedade democrática. Essa contradição explica a popularidade e os riscos do populismo cujo símbolo maior é a “arminha” na mão. *Gilson Schwartz é professor na Escola de Comunicações e Artes da USP. Lidera, nessa mesma Universidade, os grupos de pesquisa “Cidade do Conhecimento” e “Iconomia”