Impressões sobre o encontro bolsonarista de 7 de setembro na Av. Paulista – Por Carolina Freitas

O cálculo facilista de que Bolsonaro é cada vez mais minoritário na sociedade não é argumento autossuficiente para a matemática da luta de classes hoje no Brasil

Imagem: Redes sociais
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Por Carolina Freitas *

São cerca de quatro quilômetros que separam a Avenida Paulista do Vale do Anhangabaú, onde ao fim me somei ao Grito dos Excluídos organizado pela Campanha Fora Bolsonaro. Para observar a manifestação golpista, fiz o trajeto a pé do início da Avenida Paulista (estação Paraíso) até o Anhangabaú, por onde ontem pude percorrer a concentração bolsonarista em toda extensão da avenida e das suas ruas paralelas ou transversais que vão da região dos Jardins até o centro de São Paulo, entre 13h30 e 15h30, momento em que Jair Bolsonaro desceu de helicóptero para fazer seu pronunciamento no ato.

Penso que ontem o bolsonarismo como movimento concretizou um momento importante de coesão e revigoramento que não pode ser menosprezado em nome de um distracionismo algorítmico. As tarefas conscientes da esquerda, numa conjuntura crítica e revolta como esta, só podem partir da interpretação do real. Ontem, pisando na rua, foi imediata a sensação esofágica e a lembrança viva da gestação do neofascismo militante no Brasil: dos atos verde-amarelos do Fora Dilma na Paulista entre 2015 e 2016 aos já carimbadamente bolsonaristas em 2018 e 2019.

É notório que a direção neofascista brasileira fez, com orientação da rede de Trump e da supremacia branca internacional, uma força-tarefa de esforço máximo para que os atos em Brasília, mas sobretudo em São Paulo, impactassem pela capacidade de convocação e mobilização, para que funcionassem como um cume nessa radicalização ofensiva de Bolsonaro perante seu isolamento progressivo de segmentos populares, das instituições do regime político e das representações do grande capital no país.

Mesmo sem sabermos ainda o efeito nestas mesmas instituições e representações – qual resposta eventualmente demonstrarão nos próximos dias contra o golpismo –, ontem o bolsonarismo galgou uma posição para continuar sua guerra. Não serve o binarismo da confirmação do “alvo estratégico” (se Bolsonaro conseguiu dar um golpe ontem ou não) para aferir o sucesso ou insucesso do movimento bolsonarista; promoveram um encontro real daquelas centenas de milhares de pessoas que nutrem a seiva do fascismo no Brasil. Sobre as características que destaco do ato:

1) O número de participantes no ato divulgado pela Polícia Militar de João Dória – 125 mil pessoas – me pareceu, na qualidade de militante com experiência na participação de manifestações na avenida e pesquisadora, bastante subestimado. Havia, ao menos, o dobro de pessoas na região nitidamente identificadas como participantes no ato entre 13h30 e 15h, em horário próximo ao discurso de Bolsonaro em São Paulo.  

2) Embora as características do perfil sólido do neofascismo no Brasil – homens, pessoas brancas, mais velhos, integrantes da classe média alta e da pequena burguesia – tenham sido dominantemente presentes, ontem havia uma diversificação relativa na composição demográfica e social: havia mulheres, jovens e crianças, pessoas negras e pobres.

3) A generalidade dos participantes não usava máscara mesmo com a lotação insuportável nas calçadas e asfalto. Quando havia usuários da proteção, geralmente eram materiais de pano e com símbolos do bolsonarismo (foto de Bolsonaro, arminha com a mão, bandeira nacional, etc.). 

4) Ao contrário de uma especulação difundida nos meios digitais de esquerda, o ato não foi uma montagem de figurantes pagos de fora da cidade. Os fluxos de lotação em linhas de metrô de vários cantos da região metropolitana para as estações ao redor da Paulista, com muitos grupos bolsonaristas identificados, são contundentes e desautorizam esta afirmação.

5) Os participantes vindos de caravanas de ônibus de outras regiões do Estado, segundo pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio de Digital (Universidade de São Paulo), eram cerca de um quarto do ato. Mesmo assim, o patrocínio megalomaníaco do partido-movimento era evidente e impressionante: milhares com a mesma camiseta padronizada (com o escrito Meu Partido é o Brasil), dezenas e dezenas de ônibus nas imediações, materiais, bandeiras, vuvuzelas, caminhões de som espalhados pelo corredor da avenida. 

6) De longe, a maior reivindicação presente em cartazes amadores, banners, bandeiras e discursos ao microfone se voltava ao fechamento do Supremo Tribunal Federal e à prisão de Alexandre de Moraes. Muitas demandavam o “saneamento das instituições” e “liberdade para a pátria”. Em paralelo a isto, me pareceu constante a observação de materiais que exigiam o fim do comunismo, muitos dos quais em inglês (vi dezenas de cartazes “Out of communism”). Notei alguns cartazes pedindo aplicação do artigo 142 da Constituição Federal, sobre intervenção das Forças Armadas. Outras frases como “Eu autorizo, Presidente” e “A corda tá estourando” também eram comuns. Chamou atenção também a presença de bandeiras do Brasil imperial que transcendiam em muito a coluna monarquista no ato.

7) Não havia presença ostensiva ou proclamatória de igrejas neopentecostais e agrupamentos militares, policiais ou de segurança privada, embora esse perfil individual tivesse presença. A observação empírica visual, pela aparência comportamental e cultural, propicia crer que muitas famílias e grupos ali presentes eram parte de um estrato social de pequenos e médios empresários que apoiaram ativamente Bolsonaro na sua caçada às medidas sanitárias na pandemia.

O cálculo facilista de que Bolsonaro é cada vez mais minoritário na sociedade não é argumento autossuficiente para a matemática da luta de classes hoje no Brasil. Ontem vi de novo gente de carne e osso com orgulho do sangue que carrega nas mãos. Intermináveis pessoas comuns que querem beber mais sangue ainda para se hidratar no deserto da crise social que meneia o Brasil. Eram centenas de milhares numa disposição mórbida e fanática, embora sejam uma seita em fase avançada de depuração.

O fascismo bolsonarista apenas será decisivamente minoritário na aferição política que uma maioria consagre nas ruas. Transformar a rejeição popular ao projeto golpista de Bolsonaro, rejeição que vive em toda esquina das grandes metrópoles, em força viva nas ruas é o único caminho para superar a chaga de destruição e morte que o encontro nacional do fascismo brasileiro desfilou ontem, pisoteando os tantos outros centenas de milhares de mortos e famintos deste país, na principal avenida da sua maior cidade.

*Carolina Freiras é socióloga e doutoranda na FAU/USP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.