Isolamento e solidariedade, por Daniel Perez

O vírus tem ceifado muitas vidas, e ceifará tantas outras, mas em seu rastro fica mais claro do que nunca que a transformação só é possível através da luta coletiva

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Por Daniel Perez Duarte*

Assim que foi caracterizada a pandemia, não houve outro pensamento que me viesse à mente a não ser o de que precisaríamos de doses cavalares de isolamento e solidariedade.

Me veio à mente a imagem dos amontoados de pessoas pobres circulando incessantemente pela cidade em transportes públicos abarrotados, em busca de renda, de pão, do jantar. Jantar que seria feito naquela casa de dois cômodos, dividida com outras 6 ou 7 pessoas, localizada naquela rua sem saneamento básico, naquele bairro com uma precária infraestrutura de saúde pública.

Soma-se a isso a imagem de um governo inoperante e politicamente comprometido com indicadores econômicos a qualquer custo, com pouca ou nenhuma conexão com as bases populares.

Neste contexto, a necessidade de utilizar de os privilégios para movimentar os meus se fez premente. Para nós, do Coletivo IFE, nada pareceu mais urgente do que a ação para se fazer garantir o direito ao isolamento àqueles para quem muitos direitos fundamentais são negados diariamente.

Ninguém conhece tanto suas demandas e suas necessidades do que eles mesmos. Daí a importância de, ainda nas primeiras horas de concretização de uma ideia de transferência de renda de emergência, termos tido o prazer de ver se juntar à nossa inciativa grupos e coletivos que estão diariamente segurando as pontas junto ao povo, como as incansáveis equipes do Bloco do Beco e do Sarau do Binho, ambos realizando importantes trabalhos na zona sul de São Paulo, onde a crise se faz constante e a despeito de pandemias.

O Fundo de Solidariedade foi assim formado, da junção de um grupo de pessoas com privilégios de acesso e articulação para levantamento de recursos com os incansáveis grupos estabelecidos nos territórios, tão próximos às demandas concretas da população pobre da cidade de São Paulo.

Uma rede de solidariedade que, através da transferência direta de recursos, já contribuiu para a garantia do direito ao isolamento de aproximadamente 350 famílias, possibilitando a contenção do contágio de aproximadamente 2.200 pessoa na periferia de São Paulo. Isso sem contar a movimentação financeira gerada no território, abrandando os impactos econômicos oriundos da crise.

As histórias com as quais nos deparamos vão do desespero à restauração da fé no povo e seu verdadeiro poder de transformação. Houve desespero ao nos depararmos com famílias prestas a despejar litros de água sanitária em suas caixas de água para “matar o vírus”, imersos no criminoso mar de desinformação promovido por quem monetariza a vida humana.

Houve esperança e fé ao nos deparamos com quem foi beneficiado com o recurso e, após providenciar as compras necessárias para se manter e isolamento, doou o troco de volta ao fundo mesmo estando em situação de vulnerabilidade, a fim de auxiliar outras famílias mais necessitadas.

Pudemos perceber também uma demanda reprimida da necessidade de auxiliar. Há muita gente disposta a ajudar, mas sem compreender as dinâmicas sociais na qual estão inseridas. Assim, alienadas sobre a estrutura que nos rege, têm dificuldade em enxergar caminhos para colocar em prática o desejo de contribuir. Inciativas como o Fundo de Solidariedade dão vazão a esse desejo, aglutinam vontades, ideias e ideais. São movimentos que nos humanizam, para além das ideologias, criando o senso de responsabilidade com os nossos.

Todo poder emana do povo. Deve ser exercido pelo povo e para o povo.

A solidariedade, neste cenário de profunda desigualdade social, não é favor, não é altruísmo, não é boa ação, mas nada mais do que dever e obrigação.

O vírus tem ceifado muitas vidas, e ceifará tantas outras, mas em seu rastro fica mais claro do que nunca que a transformação só é possível através da luta coletiva.

As experiências vividas nesses dias de construção do Fundo de Solidariedade têm nos mostrado que, de fato, nada mais será como antes, e que o culto exacerbado ao individualismo, marca de uma cultura neoliberal hegemônica, terá seus pilares abalados como nunca visto.

É hora de nos entendermos e nos enxergarmos enquanto povo.

É hora do nós por nós.

É hora do eu sou porque nós somos.

Isolamento e solidariedade.

Vai dar bom.

Daniel Perez Duarte é graduado, mestre e doutor em engenharia elétrica. Membro do Coletivo IFE, tem contribuído para a realização de projetos sociais em escolas da rede pública de ensino e atualmente coordena o projeto do Fundo de Solidariedade, que visa atender famílias em situação de vulnerabilidade social no contexto do COVID-19