Leite e Agrotóxicos: Uma mistura que não deveria combinar – Por João Paulo Costa e Evandro Lucas

Eduardo Leite faz apelo pela ciência no Twitter, muito embora isso tenha se revelado mero truísmo, pois a ignora quando o assunto é agrotóxico

Foto: Governo do Estado do Tocantins
Escrito en DEBATES el

Por João Paulo Costa e Evandro Lucas *

A Assembleia Legislativa gaúcha deverá apreciar em fevereiro, ou março deste ano, o  PL260/2020, encaminhado pelo governador Leite em novembro de 2020, em regime de urgência (pasmem, em plena pandemia da Covid-19, essa era a urgência para o governador – pelo menos teve o mínimo de bom senso de retirar o regime de urgência, anteontem (10), em reunião com lideranças políticas e de entidades que denunciam o PL260), que se aprovado permite a utilização de agrotóxicos no Rio Grande do Sul sem registro ou autorização de uso nos seus países de origem. Importante dizer que entre 2016 e 2020, no Brasil, foram registrados 1.947 agrotóxicos (MAPA), mas se quisermos olhar mais amplamente essa questão, veremos que em 15 anos da série (2005-2020) foram 3.608 produtos do tipo liberados no país. Estamos falando de um mercado que produz agrotóxicos, movimentando aproximadamente US$ 10 bi por ano. Esse é o tamanhão do “bicho” – uma indústria e um varejo que faturam bilhões anualmente às custas da nossa saúde e do desequilíbrio planetário, como comprovam um mundo de pesquisas acerca dessas substâncias.

No Brasil vale quase tudo quando o tema é agrotóxico. Nossa legislação permite que sejam refeitos testes e liberados produtos sem registro nos países de origem, bem como propõe o retrocesso do PL gaúcho. Vale  também destacar a eficiência da ANVISA (parece tão eficaz quando tema é “vacina” contra a Covid-19) em liberar esses “defensivos”, pressionada pela Frente Parlamentar da Agricultura (nome chique para bancada ruralista), que funciona organicamente fora do Congresso, com sede e funcionários, tamanho seu poder, cada vez mais especializada no lobby do “Agro”, pressionando o próprio governo, o parlamento e o Judiciário. A velha “UDR” do grande latifúndio agroexportador e ainda com ares escravistas em muitos rincões do Brasil, que historicamente explora esse país, envernizada com ares “democráticos” e num jogo de cena, que cai por terra a cada edição do Relatório de Conflitos no Campo no Brasil, publicado e denunciado todo ano pela CPT nacional.

Essa facilidade em aprovar novos agrotóxicos já faz com que o alimento que consumimos e até mesmo nossa água, que deveria ser potável e segura, tenha presença marcante de substâncias tóxicas. Dados de uma pesquisa realizada por integrantes da Articulação em Agroecologia do Vale do Rio Pardo – AAVRP, sobre as águas do Rio Jacuí, que recebe o Rio Pardo – principal curso d’água da região, mostram que em determinadas épocas do ano podem ser identificados mais de 10 princípios ativos de agrotóxicos na água para o consumo humano. Isso após passar pela estação de tratamento. É verdade que os índices são baixos para o padrão brasileiro, mas questionemos: Quem prefere um copo de água com agrotóxicos, mesmo sendo considerado pouco? O consumo permanente de água e ao longo dos anos coloca a população em risco. Por isso é preciso termos a compreensão de que não há uso seguro de agrotóxicos e é necessário que o Estado pense em ações voltadas a diminuir sua utilização e o não contrário, como prevê o PL260/2020, que contraria toda e qualquer razoabilidade, numa premissa de proteção da vida.

Sabidamente temos um conjunto de pesquisas e pesquisadores de ponta no Rio Grande do Sul, que mostram os malefícios provocados pelos agrotóxicos em humanos, morte de abelhas, contaminação da água, solo e dos alimentos que ingerimos todo dia, tudo amplamente divulgado cientificamente e pela própria imprensa gaúcha, brasileira e do mundo. Para estar em conformidade com o Brasil, como dizem os que defendem o PL260/2020 em nome de uma competitividade produtiva, o Rio Grande do Sul entra na contramão do planeta, onde governos sérios e preocupados com suas populações, e entidades, buscam a cada ano produzir sem ou com o mínimo de agrotóxicos, dados os malefícios dessas substâncias à saúde humana e todo o nosso entorno.

No Rio Grande do Sul, a lei 7.747/1982, aprovada em plena Ditadura Militar, que está para ser substituída pelo “moderno” PL260/2020, já reconhecia riscos dos agrotóxicos proibidos nos seus países de origem. Essa lei resistente fez com que a Fepam barrasse a utilização do Paraquate no Estado e assim impedisse, pelo menos em tese, que esse produto conhecido por aumentar o risco do mal de Parkinson passasse a ser pulverizado sobre nossas cabeças e nos alimentos que consumimos. O Executivo aprovando esse projeto, permitirá que o Paraquate possa ser utilizado novamente. Outro produto que busca liberação é o Clomazone Emulsionável, conhecido por causar uma série de malefícios à saúde humana e à natureza. Além de evidentemente “abrir a porteira” para uma infinidade de agrotóxicos que podem nos levar a uma situação de mais risco iminente ainda, dado o avanço das lavouras monocultoras de grande escala ano Rio Grande do Sul, que hoje colocam em risco biomas históricos como o Pampa e a áreas de banhados do Sul do Estado, ecossistemas muito sensíveis à intervenção desses cultivos.

Esse movimento do governo resultou numa reação rápida de mais de 230 organizações, entre elas a nossa Articulação em Agroecologia do Vale do Rio Pardo – AAVRP (composta hoje por 23 entidades da região, que trabalha com a Agricultura Familiar Camponesa e Agroecologia), que elaboraram a carta “Mais Vida, Menos Veneno”, propondo que fossem debatidos com a população e apresentados os diferentes pontos de vista e estudos sobre os impactos do PL260. Além de uma audiência pública realizada em dezembro do ano passado, com a presença virtual de grande parte dessas entidades, que perguntavam uníssonas: Qual a necessidade real de liberar mais agrotóxicos no Rio Grande do Sul? E mais, não deveria ser prioridade de um governo, em plena pandemia, que já tirou a vida de mais de 11 mil gaúchos(as) e 236 mil brasileiros(as), buscar aprovar uma lei que “libera” agrotóxicos a esmo. A prioridade de um governo sério, num momento de crise como esse, é emprego e renda às pessoas em vulnerabilidade social, leitos em UTI, vacina para todos, tratamento para pessoas que contraíram o vírus e precisam de ajuda para se recuperarem. Isso tem de ser prioridade, não a liberação de agrotóxicos, como o governo o fez enviando o PL à Assembleia Legislativa.

Eduardo Leite faz apelo pela ciência no Twitter, muito embora isso tenha se revelado mero truísmo, pois a ignora quando o assunto é agrotóxico. Não escuta inicialmente a sociedade e nem propõe o mínimo de debate com entidades, pesquisadores e com quem tem interesse direto no tema. Sabidamente temos um conjunto de pesquisas e pesquisadores de ponta no Estado.

Nesse contexto, a pressão enquanto conjunto de mais de 230 entidades que denunciam o PL260/2020 e todo o que dele não foi apresentado ao povo gaúcho, serviu para abrir um amplo debate com a sociedade, rejeitando assim um projeto que foi proposto no “apagar das luzes” de 2020, praticamente “às escondidas”, sem debate com a sociedade, literalmente “goela abaixo dos gaúchos”, sem ouvir cientistas, órgãos que trabalham com essas questões, entidades que há décadas se debruçam sobre a temática. Essa luta que se estabeleceu nesses últimos dois meses aqui no Rio Grande do Sul teve êxito inicial, pois o regime de urgência foi retirado do projeto. Agora, será possível que governador, entidades que defendem a PL e nossos deputados estaduais respondam: Se não é permitido o uso e comercialização dos agrotóxicos nos países de origem, por que o Rio Grande do Sul deve permitir? Se não é bom lá, por que será benéfico aqui?

Uma primeira vitória já conseguimos. O projeto vai sair do regime de urgência, agora vamos ao amplo debate do PL 260/2020, e temos a responsabilidade histórica de mostramos à sociedade gaúcha o que está em jogo nesse debate e as consequências cotidianas que uma possível aprovação vai carretar às nossas saúdes e vidas. Fiquemos atentos e como ensinou Tancredo Neves, “não nos dispersemos!”. Até porque Leite e os seus querem mais agrotóxicos para nós, pois segundo eles, é para o nosso bem. Vê se pode!

*João Paulo Reis Costa é historiador e Evandro de Oliveira Lucas, agrônomo. Ambos são membros da Articulação em Agroecologia do Vale do Rio Pardo – AAVRP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.