Lula Livre e Golpe na Bolívia: nexos possíveis, por Waldeck Carneiro

Não é exagero afirmar, dada a radicalização da extrema direita no continente, que a integridade de Lula e Morales pode estar sob risco

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Por Waldeck Carneiro* Dois fatos recentes sacudiram a conjuntura latino-americana e mundial: a libertação de Lula no dia 8 de novembro de 2019 e, dois dias depois, o Golpe de Estado que impôs a renúncia ao presidente constitucional da Bolívia, Evo Morales. No caso de Lula, após 580 dias como preso político, posto que foi condenado sem provas, com base em convicções de acusadores e julgadores, transformadas pela mídia oligopolizada na mais pura expressão da verdade, prevaleceu a apertada decisão do STF (6 a 5) no sentido da reafirmação do instituto do trânsito em julgado, garantia constitucional que vinha sendo pulverizada, como várias outras (laicidade do Estado, liberdade de ensino, autonomia universitária, imunidade parlamentar). Chama a atenção o fato de que o STF tenha se disposto a deliberar sobre a validade de um dispositivo que já está claramente insculpido na Constituição, Art. 5º, Inciso LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Como guardiã da Carta Magna, à Corte Suprema não cabem interpretações diletantes, verdadeiras reescrituras, do texto constitucional. Seu papel é apenas zelar pela estrita observância do dispositivo constitucional. No Congresso Nacional, a extrema direita, com apoio da grande mídia, tenta emplacar uma Proposta de Emenda Constitucional para suprimir da Constituição a referência ao trânsito em julgado que, em última instância, é o instituto que assegura o princípio da presunção de inocência, aspecto consagrado no arcabouço constitucional das principais democracias do planeta. Não lograrão êxito, pois o artigo 5º da Constituição brasileira é cláusula pétrea, ou seja, é inamovível, exceto por interveniência de um poder constituinte originário, vale dizer, por uma Assembleia Nacional Constituinte. No caso boliviano, ficou evidente o descontentamento do capital internacional com a quarta vitória consecutiva de Evo Morales nas eleições presidenciais de outubro de 2019. Tal como Aécio Neves, que se recusou a reconhecer a vitória de Dilma Rousseff em 2014 (também a quarta consecutiva do PT) e apoiou o golpe de Estado de 2016, o candidato derrotado na Bolívia, Carlos Mesa, e os líderes do campo oposicionista, em especial Luís Fernando Camacho, não aceitaram a vitória de Morales. Com apoio da OEA, dos Estados Unidos e do Brasil, bem como das Forças Armadas e de lideranças evangélicas bolivianas, desfecharam o golpe. Em gesto simbólico, Camacho entrou no palácio presidencial com a Bíblia aberta, logo após a renúncia imposta de Morales, como se estivesse anunciando a instalação de uma “teocracia neopentecostal” na Bolívia. Ressalte-se que o mesmo Camacho foi recebido em Brasília pelo ministro terraplanista das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, há poucos meses, para tratar da conjuntura boliviana e combinar estratégias para conspirar contra e derrotar o governo de Evo Morales. No atual estágio do capitalismo, elites neofascistas e neopentecostais latino-americanas radicalizam sua posição em torno da agenda macroeconômica ultraneoliberal, sempre manifestando claro desapreço ao Estado Democrático de Direito: direitos sociais, liberdades individuais e coletivas e garantias constitucionais viraram pó em Honduras, no Equador, no Brasil e, agora, na Bolívia. No Brasil, o capital internacional deu sustentação ao golpe de Estado de 2016 com o fito de assumir o controle de nossas riquezas estratégicas, em particular das imensas jazidas de petróleo na camada do pré-sal no mar territorial brasileiro. Na Bolívia, o capital internacional está novamente dando suporte a um golpe de Estado, de olho nas reservas de minério, energia e hidrocarbonetos, coração da riqueza que pertence ao povo boliviano. Brasil e Bolívia viveram, em períodos simultâneos, sob governos progressistas, que decidiram colocar o Estado no controle, ainda que parcial, de suas respectivas reservas de riqueza e potencialidades estratégicas, além de gerir aquelas riquezas, de modo a financiar políticas de caráter igualitarista, combatendo desigualdades, incluindo os mais pobres, ampliando direitos e promovendo cidadania. Nesse período, o Brasil elevou, como jamais fizera antes, o valor nominal do salário mínimo, saiu do Mapa da Fome da ONU, incluiu pobres e negros no ensino superior e gerou trabalho e renda, produzindo aumento recorde da massa salarial (aumento vertiginoso do número de empregados com carteira assinada combinado com valorização progressiva do salário mínimo). Na Bolívia, os três governos de Morales aumentaram exponencialmente o PIB boliviano, multiplicaram a renda per capita das famílias, mantiveram taxas estáveis de crescimento econômico, reconheceram a cidadania dos povos indígenas e tiraram milhões de pessoas da extrema pobreza. Não há dúvida de que estamos diante de uma ofensiva da extrema direita na América do Sul, sem nenhum pudor ou respeito em relação aos marcos constitucionais. No Brasil, o próprio presidente da República e seus filhos propagam ódio, intolerância e violência: ameaçam de fechamento o STF, cogitam um novo AI-5 para conter a esquerda, mantêm estreitas relações com as milícias. Na Bolívia, logo após a deflagração do golpe, com a renúncia forçada de Morales, canais de televisão progressistas foram invadidos, o diretor de uma rádio sindical foi amarrado numa árvore e a prefeita de Cochabamba, Patricia Arce, vinculada ao movimento político liderado por Morales, também foi agredida e humilhada em praça pública. Não se pode descartar a hipótese, a ser firmemente neutralizada, de fechamento do regime no Brasil. Não é exagero afirmar, dada a radicalização da extrema direita no continente, que a integridade de Lula e Morales pode estar sob risco. A luta pelo Estado de Direito e pela convivência democrática entre forças políticas antagônicas é prioritária! Fora do ambiente democrático, não há paz e prevalece a barbárie. É tempo de assimilar, na essência, o que nos ensinou Carlos Nelson Coutinho e assumir, com profundidade, nos discursos e nas práticas, a democracia como um “valor universal”. *Waldeck Carneiro é professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e deputado estadual (PT-RJ).
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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