Marxismo, América Latina e literatura - parte 2

Entrevista com Yuri Martins-Fontes sobre filosofia, literatura e viagens, nos dois anos da publicação do livro “Marx na América”

Escrito en DEBATES el

POR YAN VICTOR*

Damos aqui sequência à entrevista com Yuri Martins-Fontes, na ocasião do segundo ano do lançamento de sua obra “Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui” (Alameda/Fapesp, 2018).

Na primeira parte – Uma conversa com o filósofo e escritor Yuri Martins-Fontes: Marxismo, Crise e Pandemia (parte I) –, o filósofo e escritor fez uma análise da conjuntura brasileira, um balanço crítico da derrocada da estratégia democrático-popular e nos falou dos desafios que vê para as esquerdas nessa trama conjuntural. Nos brindou também com alguns comentários sobre a teoria marxista do valor, trazendo exemplos concretos da sua atualidade na realidade brasileira, sobretudo quando se intensifica sua face mais atroz, a saber: a intensificação da exploração da força de trabalho, o aumento do desemprego estrutural e a dilapidação dos recursos naturais, fenômenos ampliados com os desdobramentos da pandemia dao covid-19.

Na esteira dessa primeira conversa, Yuri nos apresenta agora uma leitura sobre Nossa América. De início, ele comenta algo sobre seu livro recentemente lançado em 2018, “Marx na América”, que é fruto atualizado de seu doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo e o Centre National de la Recherche Scientifique da França, defendido em 2015: “O marxismo de Caio Prado e Mariátegui: formação do pensamento latino-americano contemporâneo”.

Na obra, ele trata daqueles autores que identifica como sendo dois dos mais profundos pensadores do período de formação do marxismo na América: Caio Prado Júnior e José Carlos Mariátegui. Yuri nos fala sobre a pertinência de Caio Prado e Mariátegui na superação de uma concepção etapista e eurocêntrica, que importava modelos estrangeiros e analisava os processos de transformações sociais na América Latina como equação automática; o leitor encontrará a singularidade de Caio Prado e Mariátegui a esse respeito.

Em um segundo momento, suas produções mais recentes, ainda inéditas, nos são apresentadas em primeira-mão. Transcrevemos a fala de Yuri sobre seu Relatório Final de pós-doutorado, finalizado em 2017 na Universidade de São Paulo, intitulado: Marxismo e Saberes Originários: das afinidades entre os outros saberes e a concepção histórico-dialética. Aí temos um breve depoimento sobre as afinidades do pensamento indígena – chamado por Lévi-Strauss de pensamento selvagem –, com a perspectiva histórica marxista de matriz ecológica. Aporte este que chega em boa hora: momento crítico em que lideranças indígenas, como Davi Kopenawa, denunciam o caráter destrutivo da civilização capitalista e profetizam a proximidade de seu fim (o que ficou conhecido como “a queda do céu”).

Na sequência, a entrevista ganha um caráter etnográfico, inclusive com elementos de sua trajetória biográfica, quando Yuri conta sobre suas viagens pela América. Escritor apaixonado pela “Pátria Grande”, claramente influenciado pelo romantismo socialista de Mariátegui, ele fala sobre suas andanças pelo continente, o que inclui as experiências e estadia com os então guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC-EP), nas montanhas da Alta-Amazônia, e ainda com os Zapatistas, em Chiapas, Sul do México.

Essas histórias são parte de sua primeira grande viagem – entre 2001 e 2002 –, na qual percorre durante um ano, por terra e água, de São Paulo até o México. Alguns anos mais tarde, as expedições continuariam, desta vez para o Cone Sul e logo pelo Brasil do rio São Francisco e do litoral. Depois, entre 2006 e 2007, Yuri faria sua maior travessia, indo desde a Europa até a Ásia, passando pelos países do mediterrâneo, entrando pelo Oriente Médio no Chifre da África, e cruzando finalmente da Arábia à Índia.

Essas tantas viagens – que marcariam a trajetória de vida do militante –, sob a verve crítica do escritor, serviram de base histórica para a criação de contos, relatos e crônicas de viagens em um livro de três volumes de cunho literário, cuja publicação está próxima.

Por fim, finalizamos a entrevista com uma pergunta sobre o horizonte latino-americano. Lá o leitor encontrará algo similar ao que foi dito outrora por Marx, já no fim de sua vida (entrevista de Marx ao jornalista John Swinton, agosto de 1880); o jornalista perguntara: – Qual a lei última do ser? E Marx responde: – A luta!

Há mais de um século dessa resposta, embora o horizonte de futuro latino-americano não seja muito animador: “seguiremos de cabeça alta”, nos diz o entrevistado. E “seguir” aqui significa: “lutar”!

MARXISMO e AMÉRICA LATINA

1. Em 2018, a editora Alameda, com apoio da FAPESP, publicou seu livro Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui, que é resultado de tese de doutorado. Qual a pertinência desses dois autores para o marxismo latino-americano? O que eles têm de mais atual, que possa nos auxiliar a pensar o que estamos vivendo no Brasil e na América Latina de hoje?

Sim, Yan, o livro é fruto desta tese, em que tive a oportunidade de ser orientado por dois professores que são bons conhecedores dos temas do marxismo na América. O Lincoln Secco, professor de História na FFLCH-USP, autor de várias obras sobre Caio Prado; e o Michael Löwy, professor brasileiro radicado na França que embora não seja especificamente um estudioso do Mariátegui, tem alguns interessantes artigos a seu respeito, e me recebeu para um estágio doutoral junto ao CNRS francês. Este contato permitiu que juntos desenvolvêssemos um proveitoso debate, através de um seminário semanal supervisionado por ele, sobre o marxismo latino-americano, no qual foram incluídos outros pesquisadores brasileiros que também estavam em Paris à época.

Foi uma oportunidade para que todos aprendêssemos sobre este genial autor peruano – ainda pouco conhecido entre nós. A pesquisa foi favorecida também pelo fato de Paris ser uma enorme biblioteca, onde se encontram livros raros e inumeráveis pesquisas – e mesmo documentos históricos adquiridos (ou roubados pelo colonialismo francês) – material de pesquisa sobre tudo que se possa imaginar, inclusive sobre o marxismo latino-americano, pesquisas produzidas no mundo todo, a que pude então ter acesso.

Ao final da pesquisa doutoral, a banca avaliadora, composta pelos professores Wilson Barbosa, Jorge Grespan, José Mao e Gilberto Maringoni, recomendou a publicação da tese, e assim o trabalho obteve apoio da Fapesp, sendo publicado em 2017 em primeira impressão, e em 2018 em edição definitiva.

Sobre o Caio Prado e o Mariátegui, eles figuram entre os grandes pilares do marxismo na América. Os autores estão entre os primeiros que pensaram – desde uma ótica propriamente americana – o ferramental materialista-histórico iniciado por Marx e Engels.

Os dois marxistas, como poucos outros no início do século XX, foram pioneiros em aplicar, de uma maneira autêntica, a concepção dialética da história – o marxismo – à nossa realidade histórica, que é tão distinta da europeia, evitando copiar soluções estrangeiras que não cabem em nosso contexto.

Por exemplo, não tivemos na América o feudalismo, como bem nota Caio Prado (em “A Rrevolução Bbrasileira”, de 1966, dentre outras obras), mas sim o escravismo, e portanto nossa “evolução” não foi nem poderia ser semelhante à da Europa.

Uma ideia central na obra de Caio, mas também presente em Mariátegui, é a de que nossas sociedades americanas estavam incluídas desde sempre, subalternamente é claro, no movimento da consolidação do capitalismo europeu – mesmo antes de sermos propriamente capitalistas.

Já o pensador peruano considera que, se um dia uma revolução democrática-liberal pôde ter sido necessária entre nós, as elites daqui não foram capazes de realizá-la. Nossas elites nunca foram “nacionalistas”, como as da Europa, ou mesmo da Ásia – povos consolidados há séculos, em que as classes dominantes se identificavam culturalmente com o povo.

Em seu clássico “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana” (1928), Mariátegui mostra, mediante diversas passagens históricas como nossas classes dominantes eram – e são – xucras, iletradas, fúteis, identificadas sempre com o que é de fora, com o europeu, com a língua de fora, com a cultura de fora; pensam que são brancos, querem ser loiros, não se enxergam como mestiços, muito menos se veem ao lado de seu povo. Caio Prado diz algo bem parecido sobre as elites brasileiras: incultas, ignorantes, sem projeto de país, sem identificação com a nação.

Mariátegui põe também sua atenção no aspecto “socialista agrário” da cultura indígena andina, que jamais aceitou nem assimilou os vícios “individualistas”, as imposições da cultura ocidental. Ele acredita que aí está o germe de nossa Revolução Americana: a tradição comunal solidária.

Neste trabalho, dou atenção a um ponto crucial, uma concepção que converge no pensamento de ambos e os aproxima de outros dos maiores pensadores do marxismo universal, Gramsci e Lênin: nossas revoluções foram feitas “pelo alto”. Foram movimentos liderados por cima, por facções – menos medíocres – da burguesia, que perceberam que sem pequenas reformas, sem que se cedesse minimamente às classes populares, não se poderia avançar a independência política e o capitalismo. Assim, certas frações das elites, ao permitirem e mesmo dirigirem as mudanças mais urgentes, apaziguaram momentaneamente as revoltas da população.

Algo semelhante ao que fez – novamente – no Brasil parte do empresariado “progressista”, ao apoiar o projeto de reformas urgentes do desenvolvimentismo social petista, quando viam que já não podiam mais, por vias eleitorais, resistir à ascensão democrática capitaneada por Lula: primeiramente se aliaram ao presidente, depois impuseram, mediante táticas das mais sujas, suas pautas, pouco a pouco.

E disso tratam nossos dois autores: com tantas diferenças entre América e Europa, a consequência é que tampouco nossos passos revolucionários teriam de ser os mesmos que os dos europeus. Se lá fora eles passaram pelo capitalismo através de revoluções liberais, no nosso caso a situação era toda outra: e portanto eles se colocam contra as “alianças” com a burguesia supostamente “nacional”. Não existe “burguesia nacional”. Embora ambos defendam alianças pontuais de urgência – para amparar as populações mais vulneráveis –, o projeto político de país, dizem, não pode nunca se subordinar às classes dominantes.

Lamentavelmente, o PT descobriu tarde demais que obter o governo não é deter o poder. Caio Prado mostra com números que a consolidação do capitalismo no Brasil – periferia do sistema – chegou mesmo a “piorar” a condição de certos dos trabalhadores, anteriormente meeiros, depois boias-frias ainda mais famintos.

Mariátegui mostra que o capitalismo quase destroçou as comunidades democráticas e autossustentáveis andinas, que só não se perderam porque mantiveram sua unidade, sua fé, agora sustentada em um novo mito, um mito racional: o da liberdade, o mito revolucionário que reerguerá seu povo e cultura.

2- Yuri, em termos de projeto político, você diria que as obras de Caio Prado e Mariátegui se aproximam de uma democracia radical com meta socialista? Ou compreendiam que em Nuestra América existia a possibilidade de transição a uma sociedade para além do capitalismo de bases coloniais?

Como marxistas, ambos têm por meta a implementação de uma sociedade socialista. Porém não são ingênuos, e sabem que não basta gritar pelo socialismo para se conseguir levar a cabo uma efetiva revolução. Mariátegui entende que a oportunidade que a burguesia peruana teve outrora de realizar certas tarefas democráticas se perdeu, e que cabe agora aos socialistas levarem adiante tais tarefas, e aprofundá-las rumo ao socialismo. Caio Prado entende que é inócuo tentar definir profeticamente a forma como se dará uma revolução, de modo que a tarefa socialista é realizá-la paulatinamente mediante tarefas básicas, estando-se sempre atento às oportunidades de avançar o processo – ele cita a Revolução Cubana como exemplo de uma revolução que não se nomeou “socialista”, mas que se tornou socialista do seu percurso.

Para ambos, a tarefa do revolucionário consiste em mirar o socialismo, rumar no sentido de suas pautas, observar com atenção suas oportunidades de avanço revolucionário, realizando no dia a dia tarefas de urgência que possibilitem paulatinamente melhorar a situação miserável da maioria da classe trabalhadora do campo e da cidade, de modo a aumentar a conscientização popular acerca de seu problema.

Como diz o Caio Prado (em entrevista a revista da Filosofia-USP), quando tivermos algumas dezenas de milhares homens dispostos a pegar em armas, a tarefa comunista será ajudar a armá-los; antes disso, precisamos lutar por condições para que sobrevivam, tenham direitos mínimos, e obtenham maior noção acerca da exploração que sofrem.

Em suma, é preciso construir a situação revolucionária, não apenas falar dela.

3. Um dos elementos presentes na obra de Mariátegui é a questão indígena. Em 2017 você terminou seu trabalho de pós-doutoramento sobre marxismo e saberes originários. Atualmente algumas lideranças indígenas (estou pensando em Davi Kopenawa e Ailton Krenak) vêm ganhando espaço em análises sobre a conjuntura, produzindo livros que criticam duramente a civilização moderna, capitalista e ocidental. Quais os caminhos e desafios para trabalhar com a questão indígena em países periféricos como o Brasil a partir do referencial marxista?

A crise estrutural do capitalismo de que falávamos, é uma crise também da própria civilização moderna, que, como expõe o historiador Koselleck, nasceu cheia de promessas de liberdade e desenvolvimento social jamais realizadas. Pelo contrário, vivemos numa sociedade cada vez mais destrutiva, controladora.

“A natureza está ameaçada”, diz a grande mídia pseudo-ambiental, supostamente preocupada. Mas o que isso quer dizer, senão que o homem, ou a grande maioria da espécie, está ameaçada por um sistema que em nome dos benefícios de poucas megacorporações-abutres, comandadas por mafiosos, agride, desregula o equilíbrio do metabolismo entre o homem e a natureza?

Diante disso, as sociedades originárias, com seus modelos de produção sustentável, com sua prática democrática cotidiana, têm muito a nos ensinar. E já estão ensinando. Veja-se a produção de alimentos saudáveis, sem venenos, sem câncer. Ou o refluxo que vem ocorrendo nas últimas décadas da urbe para o campo, com vistas a uma vida mais saudável. Não é um retorno ao rural profundo; é um rural que se usa sim de alguma tecnologia, mas sem uma extrema dependência dela.

Com suas práticas saudáveis, sustentáveis, limpas, democráticas, o discurso ambientalista tem conseguido obter vitórias. Esses movimentos ligados à terra são o que o Joan Alier chama de “ecologistas populares”, são sociedades que são ambientalistas não só por decisão ética e racional, mas porque deste modo estão a defender suas próprias vidas, os territórios em que vivem, os recursos naturais de que vivem, seus filhos, a espécie.

Quanto ao pós-doutorado que você mencionou, tive a oportunidade de ser supervisionado pelo professor Paulo Eduardo Arantes para estudar a convergência entre o marxismo e os saberes indígenas. No percurso, tentei traçar o histórico de como o dito “Ocidente” calou e pilhou os saberes originários, que em muitos aspectos era superior ao conhecimento europeu à época. Por exemplo, tem um tal Claude d'Abbeville, francês que chegou na América em 1500 e pouco, mais precisamente no litoral sudeste do que hoje é o Brasil; e ele, em correspondência, zomba dos tupis por eles “acreditarem” que “a lua influencia as marés”… Algo hoje bastante óbvio, mas que entre os ocidentais só será comprovado mais de meio século depois, por Newton.

E isso nos mostra muito. Mostra a extrema falta de alteridade ocidental. Mas mostra também a grande ignorância dos europeus, não só quanto à astronomia, mas à agronomia, aos alimentos! Não à toa, Josué de Castro, em sua clássica obra “Geopolítica da fome”, afirma que a Europa foi o continente que mais sofreu com a fome ao longo da história.

Contudo, aconteceu que esta Europa – que era periférica no século XV, num mundo cujo centro estava entre a Pérsia e a Índia –, esta Europa estagnada, até mesmo por estar alienada do crescente comércio global que emergia, aventurou-se ao mar. Ou melhor: o mais periférico país europeu, o mais excluído, o mais sem saída, se lançou ao mar, se arriscou ao desconhecido para tentar uma solução a sua estagnação, e assim alcançou a América, usando-se para tanto da bússola dos chineses, da matemática dos egípcios, das armas de aço que tinham conhecido através dos povos da Ásia Menor, no milenar comércio afroeurasiático.

Já os povos americanos, em seu continente isolado, se desenvolveram enormemente em agronomia, astronomia, nutrição, medicina, psicologia, e mesmo na política democrática, mas não tinham o aço, não puderam ter tantos contatos com tantos povos, quanto os europeus.

A partir da invasão da América é que a Europa começa a se tornar o centro do mundo: após pilhar as riquezas indígenas. E mais do que isso: após aprender e roubar e editar segundo seus próprios interesses os saberes dos povos americanos originários, seus conhecimentos preciosos.

É assim que os europeus obteriam recursos para investir em suas revoluções Científica e Industrial. Foi a batata dos que consideravam ignorantes adoradores do sol, que matou a fome histórica dos “doutos” cristãos adoradores do deus-correto – este tal todo-poderoso que fez a mulher de um osso do homem pra depois aterrorizar Sodoma entre uns e outros milagres.

Foram as riquezas roubadas da América que permitiram aos europeus, alguns séculos depois, superarem seus concorrentes chineses, indianos, e se tornarem o centro do novo mundo moderno…

E isto dura até a Segunda Guerra, quando cedem o posto pros EUA, passando a ser apenas sócios menores. Mas isso começa a mudar. A China e a Rússia ascendem, os EUA declinam. E o Brasil que estava junto aos emergentes BRICS, crescendo, está agora lançado, por uma elite mesquinha, nesta miséria inominável… 

LITERATURA e AMÉRICA LATINA

4. Yuri, recentemente você vem se ocupando de um trabalho literário que tem como mote uma grande viagem sua pela América Latina, na qual você esteve em países como Venezuela, México, Colômbia, Peru, além da América Central. Poderia nos dizer o que podemos esperar desta narrativa? O leitor encontrará algo sobre sua estadia com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC-EP), ou sobre sua visita aos Zapatistas?

Sim, Yan, trata-se de uma narrativa baseada em algumas grandes viagens solo que realizei ao longo de meus trinta anos, na primeira década deste século, quase sempre por meio de transportes públicos locais, ônibus, barcos, trens, além de caronas e a pé. Entre idas e vindas, foram mais de cinco anos de estradas, rios, mares.

Dentre várias viagens menores, há duas expedições de cerca de um ano cada pela nossa América, uma de São Paulo ao deserto do Norte do México, outra pelo Cone Sul e o Sertão brasileiro; e por fim a maior viagem, de um ano e meio, em que atravessei o imenso continente conjugado da Afroeurásia, indo de Lisboa até Nova Delhi, percorrendo por terra e água toda a Europa latina e eslava, cruzando o Bósforo e o Oriente Médio, a Síria antes da destruição, entrando na África pelo Egito, subindo o Nilo rumo ao Sudão, Etiópia, e atravessando o Mar Vermelho num barco de gado do Djibuti rumo ao Iêmem, antes de chegar ao Mar da Arábia e por fim à Índia…

À volta, em 2007, trouxe comigo dezenas de milhares de fotografias e algumas dezenas de cadernos manuscritos, além da proficiência em alguns idiomas. Realizei exposições fotojornalísticas e em museus, e publiquei artigos, crônicas políticas, reportagens.

Porém, por motivos econômicos e políticos, tive de adiar a escrita desta grande narrativa como um todo, o que envolveria um tempo enorme e recursos materiais de que eu não dispunha. Retomei assim minha militância junto ao movimento de cursinhos populares e educação popular, e comecei a dar aulas em faculdades e a trabalhar como tradutor, além de retomar atividades como revisor e jornalista de redação, à época na revista Reportagem, depois Retrato do Brasil.

De início, minha ideia era a de formatar estas tantas histórias vividas enquanto crônicas de viagem, mas depois, envolvendo-me mais com a poesia, a prosa literária, me permiti certa liberdade autoral. Descrevo um pouco desta trajetória em minha página pessoal Travessias: revista só.

Resolvi também dividir a narrativa em três volumes, dada a dimensão um tanto épica dessas viagens: um primeiro sobre a América de Sul a Norte; um segundo sobre o Cone Sul e o Brasil do rio São Francisco e litoral; e a terceira é esta grande travessia feita de 2006 a 2007 desde a Europa até a Ásia, passando pelo Chifre da África.

O primeiro livro é sobre esta viagem que você mencionou, de São Paulo até o México, por terra e água, entre 2001 e 2002. Deve estar pronto daqui a alguns meses, oxalá. Estou revisando pela enésima vez… É neste livro inicial em que conto dessa estadia junto às FARC-Exército do Povo, em que convivi cerca de um mês com os guerrilheiros, tendo me alojado no acampamento de selva dirigido pelo grande líder do Estado-Maior fariano e responsável pelas relações exteriores da guerrilha, o comandante Raúl Reyes, nas montanhas da alta floresta amazônica.

Lá fui muito bem recebido e pude entrevistar este famoso dirigente político e militar, que uns anos depois foi morto em um ataque traiçoeiro orquestrado pelos EUA no território do Equador, invasão que quase causou uma guerra com a Colômbia.

Além dele entrevistei também guerrilheiros comuns, conhecendo detalhes das histórias desses homens e mulheres que entregaram suas vidas por uma causa, muitos por idealismo, outros por necessidade, num país mais desgraçado e desigual que o Brasil. Um deles me disse: “Não tive estudo, não pude conhecer bem o que é o comunismo, mas sei que na miséria extrema em que eu e minha família vivíamos, não era mais possível deixar de tentar fazer algo, e aqui sinto que faço algo”.

Estive também com povos indígenas na Amazônia, em acampamento do MST, e travei contato com membros dos Zapatistas, no estado de Chiapas, no México, além de ter podido visitar Cuba ainda com o lendário comandante Fidel Castro vivo – mas infelizmente não consegui vê-lo, exceto a ponta de sua barba branca dentro do carro presidencial, quando ele foi à televisão estatal falar à nação, após um atentado de mercenários de Maiami, em Havana, que destruiu a embaixada mexicana.

5. Sobre seus escritos de maneira geral, na filosofia, na literatura, você poderia nos contar algo sobre os grandes autores, pensadores, escritores, que lhe influenciaram, recomendar alguns que você considera fundamentais à formação contemporânea de um jovem intelectual ou artista crítico? 

Considero essencial a qualquer um, se desenvolver em todas as potencialidades humanas, o intelecto, os sentimentos, o corpo, a imaginação. Creio que essa busca pelo equilíbrio favorece qualquer atividade a que nos dediquemos. Creio que um intelectual, um escritor, um militante não podem ser pessoas bitoladas, fechadas às novas experiências, às ricas possibilidades que a existência real e única nos pode possibilitar. Infelizmente ainda há muito conservadorismo social, muito moralismo raso, na chamada “esquerda” política.

Bem, sobre aqueles que me influenciaram – digo influência no sentido não de devoção, mas de abertura de horizontes para que eu pudesse melhor elaborar minhas próprias concepções –, enquanto pensadores teóricos, acho a genialidade do Marx sublime: ele mistura na sua escrita erudição e rigor, com ironia, literariedade. Mas também acho o Engels grandioso, um parceiro que além de complementar as ideias do amigo, trouxe contribuições preciosas à filosofia dialética da práxis. E o arguto Lênin, mestre da estratégia, da visão política prática: a arte de saber se comunicar com o povo, que tantos teóricos ensimesmados, socialistas acadêmicos entrincheirados no conforto asséptico das universidades, passa longe.

Fora do campo do socialismo, gosto de certas ideias do Nietzsche (aliás, Mariátegui foi um dos primeiros marxistas a analisar a importância de seu pensamento), que apesar de ter um lado bem conservador, é um crítico mordaz da superficialidade, da artificialidade da vida burguesa pobre de espírito, amoral, torpe… Como bem nota o Antonio Candido, ele precisa ser mais lido pelos socialistas.

Na América, além do Mariátegui e do Caio Prado, cito os cubanos José Martí e o Julio Mella, o argentino Aníbal Ponce, o caribenho Frantz Fanon, o Werneck Sodré, mais recentemente o Florestan Fernandes. São tantos – mereceriam uma outra conversa.

Na irmã África, com questões bastante próximas às nossas, é preciso conhecer o revolucionário lusófono Amílcar Cabral, o ganense Kwame Nkrumah...   

Na literatura moderna, recomendo o altamente sarcástico crítico da modernidade Heinrich Heine, que tanto Marx como Nietzsche consideravam dentre seus escritores prediletos. O Dostoiévski, que com sua profunda sensibilidade antecipou a psicanálise; o Jack London, um aventureiro que chegou a mendigar, ser pirata, e foi um dos primeiros divulgadores socialistas estadunidenses, escritor de narrativa ágil. Dos de fora, cito ainda a Anais Nin, o Hemingway.

Já dentre os nossos, aprecio demais Machado, Lima Barreto, Graciliano, o colombiano García Márquez, o paraguaio Roa Bastos, os formidáveis Guimarães Rosa e Clarice Lispector, e por que não o também “nosso” Saramago... Todos eles também filósofos, sob a rubrica da literatura.

Na poesia, nosso povo, nossa língua, menciono com especial apreço Bandeira, Drummond, Vinícius e Cecília Meireles, mas também Mário de Andrade, Pessoa, Florbela Espanca, Ernesto Cardenal, Manoel de Barros, Leminski. E ainda Brecht, Maiakovski...

6. O horizonte de futuro latino-americano não parece muito animador. Você teria alguma avaliação sobre os desafios e perspectivas para nossa América?

A situação está ruim mesmo. Mas não deve perder a fé nas possibilidades de transformação: digo, a  racional. O “mito revolucionário”, a esperança na emancipação humana, a utopia real de que nos fala Mariátegui, é um componente imprescindível da luta de um comunista; ao lado da importância de se conhecer a fundo as contradições da realidade.

Daí a centralidade da categoria da “práxis” no materialismo-histórico: a ideia de que é imprescindível não só refletirmos dialeticamente sobre os conflitos da sociedade, mas efetivamente transformarmos essa sociedade. Ou seja: é preciso tornar realidade prática a nossa teoria; teoria esta que, por sua vez, foi fundada na prática, no real, e portanto, conforme modifiquemos esse real, ela deverá ser novamente teorizada, refinada, sempre.

Por sua própria crise estrutural, de que conversávamos, o capitalismo tende a terminar. Mas não sabemos quando; há que se pressionar, que se apressar este fim, e em um sentido socialista.

Pois veja que tampouco sabemos se o que virá depois (o “pós-capitalismo”) será enfim o socialismo, uma forma mais democrática e solidária e racional de se produzir e gerir a sociedade, ou se será um regime ainda mais autoritário, mais iníquo que o atual, uma espécie de império-fascista de meia-dúzia de monopólios associados. Somente a luta dirá o novo “sentido da história” (conforme o conceito caiopradiano).

Ainda que a informática, a internet, sejam bem pouco democráticas e sirvam para as corporações arrebanharem os ingênuos e promoverem a irracionalidade, os povos estão cada vez mais “vacinados”. Já não é tão fácil promover barbaridades como antes. Veja-se estes tipos de policiais energúmenos que matam a torto e a direito pelas quebradas: só que hoje eles são filmados pela vizinhança. E aí a coisa muda de figura.

Acredito que devemos nos organizar, nos associar a uma causa à qual sejamos afins, e militarmos por ela com perseverança, paciência, sem nos iludirmos ou abatermos com vitórias ou derrotas parciais – que são momentâneas.

A história nos dará a vitória – se a espécie sobreviver. Ou senão, pelo menos há a trégua do fim-comum. Mas antes disso seguiremos de cabeça alta, e resistindo ao desastre capitalista.

*Yan Victor é militante do MST e do PCB-MG. Doutorando em Desenvolvimento Social/UNIMONTES, mestre em Extensão Rural/UFV, e biólogo/UEMG