Música na Quarentena: De Ennio Morricone a Hamilton na Disney Plus

Durante a pandemia perdemos o genial Ennio Morricone e ganhamos o multipremiado “Hamilton”, lançamento da Disney Plus

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Por Filippo Pitanga*

Esse período de confinamento talvez tenha tolhido nossas liberdades de ir e vir para diminuir o risco de contaminação pela pandemia mundial, porém decerto ampliou um reencontro de interiorização com nós mesmos. O que deixamos de olhar para fora, passamos a olhar mais para dentro. Se não saímos para dançar, pudemos cantar para nossa louça, dançar com a vassoura e às vezes viver pequenos musicais em casa com os entes confinados. Neste meio tempo, faleceu o mestre das trilhas sonoras do cinema, o genial Ennio Morricone, e alguns lançamentos por streaming trouxeram sucessos dos palcos da Broadway direto para nossa telinha, como o multipremiado “Hamilton”, lançamento da Disney Plus, esquentando as pistas do lar.

Vamos começar falando de Ennio Morricone, compositor italiano recém-falecido aos 91 anos, cuja obra vai muito além das trilhas sonoras dos filmes western spaghetti (subgênero dos faroestes feitos na Itália na década de 60), pelas quais talvez seja mais lembrado de imediato. A começar pela trilogia dos dólares de Sergio Leone, como a famosa música-tema de “Por um Punhado de Dólares” (1964), que fundiu para sempre a fisiologia dos embates, através do assobio, como um instrumento musical em composições eruditas para filmes de faroeste. Não só isso, ele conseguia incorporar sensações como o som do vento, o chocalho do rabo de uma cobra ou a solidão do deserto nas composições.

Suas melodias possuíam camadas plasticamente visuais, como se pudéssemos fechar os olhos e imaginar verdadeiras imagens em atos de mise-en-scène dramatúrgica (mesmo que escutemos à parte dos filmes). Um ótimo exemplo é “Três Homens em Conflito” (1966), que combina acordes com esmero à tensão em closes nos duelos sob o sol escaldante. Mas a cereja do bolo reside em sua composição “The ecstasy of gold”, que funciona como um épico independente, a começar sua base de suspense no piano, perpassando pelos instrumentos de sopro (uma marca registrada), até evoluir para as cordas e a percussão (quase uma cavalgada), num crescendo constante. E, quando a voz feminina é sobreposta pelo coro masculino, a soprano nos surpreende a escalonar uma oitava acima, alcançando um clímax bastante cinematográfico na música, o qual prescindia de quaisquer imagens para tanto.

Outra de suas obras famosas é a trilha de “A Missão” de Roland Joffé (1986), numa história sobre redenção durante o século XVIII, e que Morricone entrega algo mais uma vez imprevisível. Ao invés de construir uma trilha pesada e cheia de superposições para representar as missões europeias colonizadoras no continente Sul Americano, o compositor nos coloca nas asas de um pássaro, como se plainássemos sobre o peso da culpa e da moral daquele período através da jornada diáfana de um oboé (que muita gente achou ser uma flauta na época). Esta decisão de sobrevoar a narrativa com algo tão lírico quanto um instrumento de sopro conectava o espectador mais à espiritualidade da terra do que à materialidade do que estava em jogo no mundo dos homens. E Morricone continuamente inovava em tudo o que fazia, vide a melodia ultrarromântica ao piano do oscarizado “Cinema Paradiso” de Giuseppe Tornatore (1988), para representar a metafísica do tempo através dos olhos do amor; Ou o conflito social entre máquina e proletariado no ganhador da Palma de Ouro “A Classe Operária vai ao Paraíso” de Elio Petri (1971), emulando barulhos metálicos contra sons orgânicos na batalha musical.

Mudando ligeiramente de assunto, mas não deixando de homenagear as grandes composições do cinema, em meio à triste notícia do falecimento de Ennio Morricone no dia 06 de julho, outra notícia ocupava as manchetes: a estreia de “Hamilton”, musical de sucesso na Broadway, que foi filmado num formato de longa-metragem para lançamento caseiro no Disney Plus (plataforma de streaming que está chegando ao Brasil em novembro). E para quem não assistiu à peça, ou está alheio a este cenário norte-americano, talvez não possuindo o mesmo envolvimento emocional, basta dizer que a trilha sonora do espetáculo alcançou o marco impressionante de 2º colocado nas paradas da Billboard – feito que não acontece com álbuns de musicais desde “Hair” em 1969. Tamanha é a repercussão que os fãs já estavam cogitando se o filme poderia concorrer ao Oscar 2021, já que mudaram as regras para permitir com que lançamentos de streaming fossem elegíveis em tempos de cinema fechado devido ao corona...

Criada, escrita e protagonizada pela bola da vez, Lin-Manuel Miranda (“O Retorno de Mary Poppins” de Rob Marshall, 2018), nova revelação de origem porto-riquenha, os méritos de "Hamilton" são muitos. Assim como o início desse texto atenta para os faroestes reapropriados pelo cinema italiano, ou mesmo para trilhas como a de "A Missão" e "A Classe Operária vai ao Paraíso", onde Morricone decoloniza na música o peso da opressão que essas histórias trazem, o musical da Broadway também fez algo ousado: Decidiu falar sobre um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América a partir da visão de um de seus nomes esquecidos, logo um que era imigrante e que veio de uma posição muito humilde. Diferente de George Washington ou Thomas Jefferson, Alexander Hamilton era visto como alguém de fora, que teve de batalhar para poder pertencer ali. Algo que a população norte-americana trabalhadora composta por grande parte de imigrantes entende bem.

Mais do que isso: para falar de uma época ainda extremamente racista, um período prévio à Guerra de Secessão e à abolição da escravatura, a peça possui um elenco predominantemente negro e não-branco (lembrando que os EUA consideram latinos como não brancos). Inclusive, boa parte deste elenco nos papéis protagonistas, interpretando personagens que por vezes foram até racistas historicamente. É de tal nível o hackeamento e purgação histórica bastante acertados e irônicos do espetáculo que os principais gêneros musicais escolhidos para narrar essa trama foram o hip hop, o soul e o r&b. Com letras, rimas e entoação fazendo olhar opositivo ao que se está sendo dito, é bem interessante avaliar texto e subtexto que concorrem na disputa de narrativas.

Não que ainda assim deixemos de estar diante de uma peça sobre um dos pais fundadores de um país que continue sendo opressor com o resto do mundo (ainda mais no governo atual). E também não podemos esquecer que esta é uma peça filmada, ou seja, não é "o filme da peça", e sim uma filmagem esperta e bem aplicada, com o uso de várias câmeras, closes e algum movimento limitado no palco. Ganhamos mais olhares sobre a obra, que pôde com isso viajar o mundo. Contudo, ainda é um espetáculo direcionado para uma plateia local, com iluminação e movimentos tridimensionais num palco giratório que para nós se torna um pouco bidimensional na frente da tela da TV. O que se destaca, por fim, é pensar como este elenco surpreendente já não estava protagonizando seus próprios filmes, como Leslie Odom Jr. (“Assassinato no Expresso Oriente” de Kenneth Branagh, 2017) Daveed Diggs (“Ponto Cego” de Carlos Lópex Estrada, 2018), Renée Elise Goldsberry (“Altered Carbone”, série da Amazon Prime Video, 2018) e a revelação Ariana Deboise, que interpreta uma versão de anjo da morte com o nome the bullet (a bala), e poderá ser vista em breve na refilmagem de “West Side Story” de Steven Spielberg.

*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema