Não se iluda com o "Jairzinho Paz e Amor". Nada mudou, o caos continua; por Henrique Rodrigues

Como recomenda a canção de Gil e Caetano, é preciso estar atento e forte. Não se engane. Obrigado a tomar essa postura, Bolsonaro deve estar furioso, mas também acuado. É justamente aí que pode reagir de forma imprevisível. Devemos todos nos manter vigilantes

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Por Henrique Rodrigues*

Quem acompanha o sofrível cotidiano da vida pública brasileira de uns dias para cá deve estar estranhando o aparente fim dos chiliques irascíveis e da escatologia política de Jair Bolsonaro, que diariamente deixavam o país e o mundo incrédulos com tantos absurdos e bizarrices.

A ceninha patética protagonizada em vários turnos no cercadinho convertido em circo na porta do Palácio do Alvorada, ao que tudo indica, também cessou. Por ora.

As lives toscas às quintas-feiras, que serviam de grande vitrine para expor toda perversidade doentia do governo mais insano e radical do ocidente no pós-guerra, agora têm um tom ameno. Teve até um sanfoneiro executando uma Ave Maria em homenagem aos mortos pela Covid-19. Calma, ele não estava assassinando a Compadecida, a Virgem Santíssima. O pessoal é ruim, mas ainda não chegou a esse patamar. É por isso que evito ambiguidades.

O escárnio com a dor alheia ainda lhe cai bem. É marca indelével.

Todo mundo já notou. Da frente de oposição mais combativa à fossa séptica mais extremista e entusiasmada, passando pelo centrão clientelista, pelos evangélicos, militares, enfim. Até os coqueiros da praia de Boa Viagem já perceberam o silêncio de Bolsonaro e sua fala polida e sacerdotal nos pronunciamentos oficiais nos últimos tempos.

Tomem como exemplo o enrosco protagonizado pelo ex-futuro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli. Imaginem a gritaria que o presidente faria se não fosse essa trégua. O camarada era a própria personificação da fraude e ia gerir o MEC e 69 universidades federais com um mestrado plagiado, doutorado e pós-doutorado fakes, sem nunca ter sido professor da FGV e jamais sendo parte da reserva da Marinha.

Bolsonaro não deu um pio. Sem estardalhaços e berros, falou até que estava resolvendo as coisas para uma "educação inclusiva e de oportunidades para todos".

Toda essa mudança veio acompanhada de um desligamento público da chamada ala ideológica (leia-se psiquiátrica), da ausência nas patuscadas que pedem golpe militar e fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e de um afastamento em cerimônias onde estão presentes ministros e entes mais ortodoxos de sua caterva.

Só que isso não foi à toa. Não é uma mudança de postura real ou um milagre divino operado na cabecinha daquele que é, sem ser, e que nunca deveria ter sido (presidente).

Ainda que temporário, o esgotamento do modelo caótico de Bolsonaro levou o líder da seita a um abrandamento obrigatório e a contragosto de sua verborragia patológica.

Isolado do planeta e dentro do próprio universo político nacional, o Messias (que não faz milagre) precisou ceder e dar alguns passos atrás, sobretudo porque, além dessa quarentena política a que foi submetido por todos os setores da República, veio uma avalanche devastadora para soterrar seus rebentos, agravada com a prisão de Fabrício Queiroz e a exposição dada ao caso, repercutido mundialmente.

Com a lâmina do STF empurrando seu pescoço contra a parede, um Congresso observando-lhe como um corvo prestes a dar o bote e os militares saindo de fininho e parando com sua bravatas, Bolsonaro ainda teme o dia em que a PF chegará com um mandado de busca ou de prisão na casa de algum de seus filhos.

Soma-se a isso o fato de hoje sermos uma ilha frente à comunidade internacional. Somos os párias da Terra, os dalits dos organismos multilaterais (o que deve nos trazer problemas econômicos ainda mais graves assim que essa pandemia acabar).

Foi essa tempestade perfeita, esse ciclone bomba, que fez com que Jair Bolsonaro recuasse e passasse a encarnar uma versão caricata e inacreditável do Jairzinho Paz e Amor.

Como recomenda a canção de Gil e Caetano, é preciso estar atento e forte. Não se engane. Obrigado a tomar essa postura, Bolsonaro deve estar furioso, mas também acuado. É justamente aí que pode reagir de forma imprevisível. Devemos todos nos manter vigilantes.

A que ponto pode ter chegado o medo e a certeza de que seria limado da presidência, ou até mesmo de que seus filhos seriam levados a julgamento, para que Bolsonaro batesse em retirada? Não é do seu perfil. Sua loucura não reconhece limites e para demovê-lo de entrar no picadeiro da barbárie, a certeza de que algo muito sério estaria para acontecer falou mais alto.

Só quem deve estar mais aliviada momentaneamente são as redações país a fora. O frenesi provocado pelos ininterruptos rompantes de falta de lucidez do presidente atolaram os jornalistas numa espiral profunda e interminável de novos fatos, minuto a minuto.

Não há pessimismo algum no que direi a seguir. O que há é apenas um cordão de realidade irrefutável.

Bolsonaro voltará a ultrapassar as margens da civilidade e da decência em breve. É natural, é parte de sua natureza política perversa. A única coisa que precisamos descobrir é quando. E de que modo.


*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira.

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.