Nicarágua: Eleição expõe contradição entre Ortega e sua história – Por Marco Piva

Qualquer semelhança com a família Somoza que governou a Nicarágua com mão de ferro durante 45 anos parece não ser mera coincidência

Foto: El País - España (Reprodução)
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Neste domingo, 7 de novembro, cerca de 4,4 milhões de nicaraguenses poderiam ir às urnas exercer o seu direito de voto. Mas, a estimativa é que pouco mais de 2,5 milhões compareçam. O principal motivo é a legitimidade do processo, marcada por uma série de irregularidades e abusos praticados pelo governo do presidente Daniel Ortega, da histórica organização revolucionária Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

Possíveis candidatos à presidência foram presos antes mesmo de registrarem formalmente suas pretensões. Todos de oposição ao governo. Outras dezenas de lideranças políticas, inclusive ex-comandantes sandinistas, seguem presos sem garantias fundamentais, o que tem sido objeto de denúncia internacional.

Com este panorama e amparado em medidas severas de controle dos eleitores, exercido por chefes locais do partido, não será difícil para Ortega obter o quarto mandato consecutivo ao lado de sua companheira de chapa Rosário Murillo, que vem a ser também a sua esposa.

Qualquer semelhança com a família Somoza que governou a Nicarágua com mão de ferro durante 45 anos parece não ser mera coincidência. Primeiro, Ortega isolou e afastou seus antigos companheiros de partido, dirigentes históricos da organização como Luís Carrión e Hugo Torres – este último está preso. O expurgo, iniciado em 1995, levou à criação do dissidente Movimento Renovador Sandinista (MRS), cujo registro foi cassado pelas autoridades eleitorais, todas elas nomeadas por Ortega. Nesse processo de divisão, até o irmão do presidente, Humberto Ortega Saavedra, que comandou o Exército Popular Sandinista, decidiu se afastar. Hoje é um próspero empresário na vizinha Costa Rica, país que abriga mais de 100 mil refugiados desde abril de 2018, quando eclodiu uma série de revoltas populares contra o regime.

A pergunta que não quer calar é por que um líder que comandou uma revolução de esquerda em 1979 chega a 2021 envolvido em tantas acusações de violação dos direitos humanos e de enriquecimento familiar? Realmente, para quem milita no campo da esquerda, a cabeça dá um giro de 360 graus. Como a FSLN, de lutas gloriosas no passado, sustenta ainda um discurso revolucionário e anti-imperialista quando internamente submete a população a um regime que se assemelha ao que de pior existiu na história do país?

Muitos estão atônitos já que chega a ser quase inacreditável a forma de governar da

dupla Ortega-Murillo. Alguns ainda se esforçam para dar um derradeiro crédito ao governo na esperança de que vale tudo para sustentar um líder que tem um duro discurso contra os Estados Unidos. Mas, e o povo nicaraguense, o que acha disso tudo?

A oposição majoritária, dividida em várias correntes que vão da esquerda à direita, cansou de acreditar nas promessas de uma eleição limpa e democrática e agora chama à abstenção como forma de retirar a legitimidade do processo eleitoral. Países latino-americanos, alguns deles governados por presidentes de centro-esquerda, se somam aos pedidos da oposição, enquanto aumentam as pressões para que a Organização dos Estados Americanos (OEA), o governo norte-americano e a União Europeia apliquem sanções políticas e econômicas mais severas contra a Nicarágua. Indiferentes ao cenário internacional, Ortega e sua esposa apostam que vencerão com facilidade uma eleição que terá uma oposição de fachada, disposta a validar o processo em troca de prebendas e cargos.

Para se ter uma ideia, não existe título de eleitor na Nicarágua. Para votar, basta apresentar o registro de identidade, que conhecemos como RG. Só que para obter a permissão de voto, é necessária a autorização de um chefe político da comunidade, normalmente um sandinista. A ele cabe exercer o supremo direito de decidir se aquela pessoa poderá ou não votar. Uma situação absurda que fere qualquer possibilidade de um pleito transparente. E o que não dizer das manifestações de protesto, todas elas reprimidas não somente pela polícia como também por grupos armados e mascarados, sabidamente ligados aos sandinistas. Aqui no Brasil, esses bandos teriam outro nome.

Este é o panorama atual da Nicarágua no momento que Ortega se prepara para assumir seu quarto mandato consecutivo, após obter, desde 2006, quando retornou ao poder, várias modificações na Constituição que facilitam suas seguidas vitórias. As recomendações dos organismos internacionais e as denúncias de violação dos direitos humanos não foram sequer consideradas por Daniel Ortega. Sua família segue bem, obrigado.

Na tradução deste momento, o escritor Sergio Ramirez Mercado, ganhador do Prêmio Cervantes de Literatura e ex-vice-presidente, afirma que “a história nicaraguense tem um mecanismo vicioso que se repete: uma ditadura provoca uma revolução para derrubar um ditador e essa revolução cria um ditador que, por sua vez, inicia um ciclo de opressão”. Para a esquerda latino-americana fica o desafio de entender tão complexa contradição política.

*Marco Piva é jornalista e viveu 5 anos na Nicarágua (1981-1986). Escreveu os livros “Fazendo amor na Nicarágua” (Editora Vozes) e “Nicarágua – um povo e sua história” (Edições Paulinas). Apresenta semanalmente o programa Brasil Latino, na Rádio USP e na Rádio Brasil Atual.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.