No ano sem carnaval é Jair quem samba em cima dos mortos – Memórias de Fevereiro (1)

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia relembra outros 9 de fevereiro que marcaram a história do carnaval, desejando o fim das duas pandemias que afligem o país: a da Covid-19 e a do bolsonarismo

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Por Estevan Mazzuia *

É, senhores... Esta semana estaríamos esquentando os tamborins para mais um carnaval, não estivesse o mundo em meio a uma pandemia que já ceifou mais de dois milhões de vidas, motivo mais do que suficiente e justificado para o cancelamento da festa.  

E com um (des)governo federal atravessando o samba, em uma desorganização que seria cômica, se não fosse trágica, não haverá motivos para risos ou alegria, num “salão” com cada vez menos mascarados. 

Enquanto Jair Bolsonaro samba na cara dos brasileiros mortos, seguimos sem o carnaval. Pra não ficarmos chorando por causa da cloroquina, no meio da multidão, o jeito é matar a saudade dos carnavais memoráveis que já vivemos. E celebrar tantos 9 de fevereiro importantes para a maior festa mais popular brasileira. 

Em 9 de fevereiro de 1909, Maria do Carmo Miranda da Cunha nascia em Marco de Canaveses, Portugal. Pouco depois, a pequena notável chegaria ao Brasil, onde se tornaria Carmen e, com seus exóticos figurinos, símbolo de nossa “tropicalidade”. Seu sucesso amplificou-se com a carreira nos EUA, mas lhe rendeu críticas por aqui: disseram que se tornou “americanizada”. Indiscutivelmente, Carmen é um símbolo de nosso carnaval e merece nossa homenagem. 

Já em 9 de fevereiro de 1937 foi fundada a Sociedade Recreativa Beneficente e Esportiva do Lavapés, uma das mais escolas de samba em atividade no país, a mais antiga de São Paulo (há entidades mais antigas, que não desfilavam como escola de samba). Campeã por sete vezes nos anos 50 e 60, a escola passou por uma fase muito triste a partir dos anos 70, chegando a encerrar suas atividades nos anos 80, voltando em seguida, sempre com dificuldades. Atualmente, sob o comando de Aílton Graça, a escola ensaia retomar os bons resultados de outrora, tendo conquistado, em 2020, o título do grupo II de acesso de bairros, equivalente à sexta divisão. Vida longa à Lavapés! 

Foi num domingo, em 9 de fevereiro de 1947, que a Portela desfilou com “Honra ao Mérito”, que lhe daria o inédito heptacampeonato, jamais alcançado. Foi em outro domingo, 9 de fevereiro de 1964, o último carnaval da República Nova, que a Portela cantou “O segundo casamento de D. Pedro I”, que lhe daria o 17º título do carnaval carioca, numa época em que enredos ufanistas ainda davam o tom do carnaval. 

Naquele mesmo 9 de fevereiro de 1964, o Império Serrano desfilava com seu antológico “Aquarela Brasileira”, de Silas de Oliveira, logo após receber, na concentração, a notícia do falecimento de Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”, a clássica canção que inspirara o enredo desenvolvido por Jorge Bittencourt e Cajado Filho, que renderia a 4ª colocação naquele carnaval, e que seria reeditado em 2004, pelas mãos de Ilvamar Magalhães, desta vez com um 9º lugar. 

Em 1970, o dia 9 caiu numa segunda-feira, em que desfilavam as escolas dos grupos de acesso, tanto no Rio quanto em São Paulo. A data consagrou os acessos de Império da Tijuca e Unidos de Padre Miguel no carnaval carioca. Seria, até hoje, a última vez que a escola da zona oeste conseguiria o direito de desfilar no grupo principal. Nos últimos anos, ela tem chegado muito perto de repetir o feito. Em São Paulo, a Mocidade Alegre desfilava homenageando Zumbi dos Palmares, para conquistar o título e o acesso ao grupo principal, de onde nunca mais sairia. A escola, aliás, seria tricampeã do grupo principal, em 71/72/73. 

Já no carnaval de 1975, o dia 9 voltou a cair em um domingo. No Rio, o Salgueiro se consagraria com “As Minas do Rei Salomão”, último trabalho de Joãosinho Trinta, antes de se mudar para Nilópolis. Em São Paulo, o Camisa Verde e Branco desfilava com “Tropicália”, para conquistar o segundo título de um tetracampeonato que demoraria muito tempo para ser igualado na capital bandeirante. 

O dia 9 de fevereiro caiu novamente em um domingo no ano de 1986, o primeiro do período de redemocratização. Nos céus, o cometa Halley podia ser visto pela derradeira vez, em sua última passagem pelo Sistema Solar interno. Aqui na Terra, em São Paulo, o Vai-Vai desfilava “Do jeito que a gente gosta”, para conquistar seu quarto título, e o primeiro de um tricampeonato que se completaria nos dois anos seguintes. No Rio, o Império Serrano era o grande destaque da primeira noite de desfiles, com “Eu Quero”, que lhe daria um terceiro lugar no campeonato.  

Nosso 9 de fevereiro desta vez caía num sábado em 1991. No Rio de Janeiro, a Tradição, dissidência da Portela que teve uma ascensão meteórica nos anos 80 interrompida pelo rebaixamento em 1989, conquistava o direito de voltar entre as escolas do primeiro grupo, levando com ela a surpreendente Leão de Nova Iguaçu, e a Acadêmicos de Santa Cruz, que não foi julgada, em virtude de um apagão na Sapucaí. Em São Paulo, Camisa Verde e Branco, com “Combustível da Ilusão”, sobre a cerveja, e Rosas de Ouro, com “De Piloto de Fogão a Chefe da Nação”, um embrião feminista, que se revelou profético, dividiam o caneco pelo segundo ano consecutivo. 

O dia 09 voltou a cair no domingo no carnaval de 1997. Depois de ser rebaixado em 1996, o Camisa Verde e Branco desfilava com “Alô Mauês, Taí nosso carnaval”, um enredo sobre o guaraná, patronado por uma marca de refrigerantes, como o título sugere. Seria campeã e conquistaria o acesso ao lado da Acadêmicos do Tucuruvi, que também caíra em 1996. No Rio de Janeiro, a primeira noite de desfiles ocorreu sem grandes destaques. Cantando “O Olimpo é verde-e rosa”, sobre o então utópico desejo de ver o Rio de Janeiro sede dos Jogos Olímpicos, em 2004, a Mangueira desfilava para conquistar o terceiro lugar. 

Em 2002, o dia 09 de fevereiro retornou para o sábado. No Rio de Janeiro, a Acadêmicos de Santa Cruz superou a Vila Isabel por um mísero décimo, e conquistou o título do grupo de acesso com o enredo “Papel - Das Origens à Folia - História, Arte e Magia”. A partir daquele ano, apenas a campeã do grupo conquistava o acesso. Em São Paulo, o Camisa Verde e Branco seria o destaque da segunda noite de desfiles, com “4, Vamos Pensar... Isso Vai Dar o Que Falar!”, que daria o vice-campeonato à escola da Barra Funda, o canto do cisne da agremiação, que agoniza há anos no segundo grupo, estando mais próxima de cair para o terceiro, do que de voltar para o primeiro. 

Novamente, em 2013, o dia 09 de fevereiro caiu no sábado, e acomodou a segunda noite do carnaval paulistano, e do desfile do grupo de acesso das escolas cariocas. Com “Negra, pérola mulher”, a tradicionalíssima Império da Tijuca faria um desfile irrepreensível, e conquistaria o acesso ao grupo principal. Em São Paulo, a Mocidade Alegre desfilava com “A Sedução me fez provar, me entregar à tentação... Da versão original, qual será o final”, para conquistar seu penúltimo e nono título no carnaval paulistano. 

A chamada terça-feira gorda de 2016 abrigou o dia 09 de fevereiro. Em São Paulo, ocorreu a apuração das notas referentes aos desfiles dos dias 05, 06 e 07, e o Império de Casa Verde festejava seu terceiro título do grupo especial, enquanto Mancha Verde e Toma Maior festejavam a conquista do acesso. No Rio de Janeiro, o foco mudava da Sapucaí e para a Estrada Intendente Magalhães, onde a Acadêmicos do Sossego desfilaria com “O circo do menino passarinho”, homenagem a Manoel de Barros com samba maravilhoso de Felipe Filósofo, Ademir Ribeiro, Sergio Joca, Fabio Borges, Fabio Silva Personal e Marcello Bertolo. Eu estava lá, e posso afirmar que o título não foi merecido. A escola estava muito bem vestida, e com alegorias belíssimas, mas os componentes não cantavam nem evoluíam. Mesmo assim, a escola conseguiu três notas máximas em evolução, e quatro em harmonia. Coisas sinistras que ocorrem no Rio, infelizmente. 

A mais recente de nossas lembranças de “09s” de fevereiro remete-nos ao carnaval de 2018, sexta-feira, com a primeira noite dos desfiles do grupo especial paulistano, e do grupo de acesso no Rio. No Rio, o destaque ficou com a Unidos de Porto da Pedra, que conquistaria o terceiro lugar com o enredo “Rainhas do Rádio - Nas ondas da emoção, o Tigre coroa as divas da canção!”. Em São Paulo, a Acadêmicos do Tatuapé defendeu bem o título de 2017, desfilando com o enredo “Maranhão, os tambores vão ecoar na terra da encantaria”, conquistando o bicampeonato. 

De tantas lembranças maravilhosas, destaco o desfile do Império Serrano de 1986, em que Renato Lage e Lilian Rabello exploraram 12 desejos do brasileiro na Nova República. Antológicos, inesquecíveis e atuais os versos de Aluísio Machado, Jorge Nóbrega e Luiz Carlos do Cavaco, no samba mais popular daquele ano, tirando da garganta o que por 20 anos ficou entalado: 

 “Quero nosso povo bem nutrido 

O país desenvolvido 

Quero paz e moradia 

Chega de ganhar tão pouco 

Chega de sufoco e de covardia 

Me dá, me dá 

Me dá o que é meu 

Foram vinte anos 

Que alguém comeu 

(...) 

Cessou a tempestade 

É tempo de bonança 

Dona liberdade 

Chegou junto com a esperança” 

É, ou não é, de arrepiar? Pois que cesse logo essa nova tempestade. 

E viva o carnaval!

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, opinião da Revista Fórum.