No Dia da Favela, pelo direito à memória – Por Renata Souza

Comemorar todo 4 de novembro é lembrar que o direito à habitação ainda é um grande problema no Rio da especulação imobiliária

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Por Renata Souza*

“Lata d’água na cabeça. Lá vai Maria, lá vai Maria. Sobe o morro e não se cansa. Pela mão leva a criança. Lá vai Maria”.

A letra da famosa canção interpretada por Marlene, uma composição de Luís Antônio e Jota Jr, nos faz voltar no tempo e lembrar das imagens dos livros de história que nos contam como foi o surgimento e a construção das primeiras favelas do Rio de Janeiro. Mais do que isso, nos faz lembrar das nossas próprias histórias, pois as que “carregavam lata d’água e que pela mão também carregavam uma criança”, eram as nossas bisavós, avós, nossas mães.

É no Brasil que surge a primeira favela, o Morro da Providência, localizada na região central do Rio. Passados mais de 120 anos, hoje somam-se mais de mil favelas na capital fluminense. Infelizmente, por ser um território negro e com populações oriundas de outros locais empobrecidos do nosso país, esse é um lugar ainda criminalizado. Não por acaso, uma das grandes lutas dos movimentos populares, favelados ou de mães e familiares vítimas da violência do Rio de Janeiro ou país é pela descoberta, reconstrução e construção das nossas próprias memórias e que sejam escritas numa linguagem e narrativa feitas por nós mesmos.

Historicamente, ainda somos apontados nas mídias como culpados por sobrevivermos à tamanha pobreza. Muitos nos culpam por não termos água encanada, carteira assinada, estudos, casa, energia elétrica. Diante disso, dia após dia, não só tentamos dizer quem inventou a desigualdade social e o racismo que estigmatiza e viola os nossos territórios favelados e as nossas próprias vidas. Todos os dias combatemos as tamanhas violações que nos cercam.

Exemplo disso é que, diariamente e incansavelmente, mostramos nos meios de comunicação populares e comunitários que a favela é sinônimo de brincadeira na rua, de diversidade cultural, dialeto, de uma forte cultura da rua, que é solidária. Tem esporte, tem alegria, união e muita construção coletiva e é tão organizada ao ponto de ser capaz de construir educação popular por meios dos pré-vestibulares comunitários, cinema, feira de rua, museus comunitários e tantas outras construções/ inovações e invenções populares.

Comemorar o Dia da Favela, todo 4 de novembro, é lembrar que, assim como as nossas bisavós, avós e mães, ainda carregamos água, pois ainda não temos o direito à água. É lembrar que as nossas crianças, na maioria das vezes, são criadas apenas por mulheres, pois muitos pais abandonam os seus filhos. É lembrar que ainda precisamos de educação pública para as nossas crianças, e que o direito à habitação ainda é um grande problema no Rio da especulação imobiliária, é lembrar que precisamos todos os dias lutar por políticas públicas para que as populações negras e faveladas tenham pleno direito à vida, o principal direito ainda a ser conquistado por nós.

E, para terminar, neste dia de afirmação sobre esse lugar chamado favela, deixamos aqui o restante da música que nos resume o sonho diário do favelado em um dia ter garantidos os mesmos direitos que o pessoal do asfalto tem.

“Lata d'água na cabeça

Lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa

Pela mão leva a criança

Lá vai Maria

Maria lava roupa lá no alto

Lutando pelo pão de cada dia

Sonhando com a vida do asfalto

Que acaba onde o morro principia”.

*Renata Souza é nascida e criada na Maré, deputada estadual (PSOL-RJ), jornalista e doutora em Comunicação.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.