O drama da vida sem direitos, por Dani Monteiro

“O trabalho assalariado carece, portanto, ainda mais agora, de significado e de defesa veemente”

O desemprego castiga a população brasileira - Foto: Cesar Itiberê/Fotos Públicas
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Por Dani Monteiro*

A pandemia causada pelo novo coronavírus impõe a adoção de medidas sanitárias extremas, como a necessária política da quarentena e distanciamento social. Mundo afora, todos os países são obrigados a lidar com as consequências irreversíveis que o quadro atual trará para a economia. Independentemente da política adotada por cada nação, haverá mudanças duradouras, que vão desde a forma como interagimos com as pessoas mais próximas até a forma como trabalhamos - ou não.

No plano das relações de trabalho no Brasil, essa emergência intensificou os efeitos devastadores das reformas neoliberais da legislação trabalhista e previdenciária implementadas ao longo dos últimos anos.

É importante enxergar que, para além da pandemia, a crise já estava posta na vida dos brasileiros desde muito antes: arrocho do salário, disseminação irrestrita do trabalho precarizado, redução de direitos e de garantias para trabalhadores formais, enfraquecimento dos espaços sindicais, intermináveis filas do INSS impedindo o acesso efetivo aos benefícios previdenciários e limitação das regras para concessão de benefícios, aposentadorias e pensões.

A ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e aposentados, observada nos últimos anos, e o projeto econômico neoliberal em curso, que fragiliza a economia, promovem mais desemprego e impõem sucessivos cortes de orçamento na área social do governo. Esse processo já nos vitimava e a pandemia apenas “acelerou a curva” do caos social.

As políticas neoliberais que defendem um Estado mínimo, sob a lógica da mercantilização da vida, não dão conta das respostas necessárias quando o motorista de aplicativo, o jovem sem o primeiro emprego, a empregada doméstica, o empreendedor e o pequeno empresário estão no mesmo barco avariado e rumo a uma crise sem precedentes para a nossa geração. Trabalhadores já vinham pagando a alta conta que recai sobre seus ombros, unicamente. Grandes empresários e banqueiros, por sua vez, contam com salvaguardas. Lamúria para muitos tantos, regozijo para poucos.

O filósofo e sociólogo português Boaventura Souza Santos defende que a cidadania veio marcada pelo direito ao trabalho. Mas é exatamente esse direito que vem sendo esbulhado dos trabalhadores, junto com sua cidadania, a partir das mudanças no mundo do trabalho – e é bom que se repita: antes mesmo do novo coronavírus.

Vagam pelas ruas os sintomas do mundo neoliberal em decomposição exemplificada pela figura do empresário de si mesmo, que nada mais é do que uma expressão máxima da precarização do trabalho – o sujeito hipossuficiente que é o único responsável pelo seu destino (quase sempre azar).

Da mesma forma, esfarela-se o conto de fadas do desempregado, que perdeu o emprego em razão das políticas neoliberais e que conseguiria nova colocação mais facilmente em um mercado de trabalho desregulado e com menos burocracia e impostos (sob o slogan covarde “é melhor ter mais trabalho e menos direito”). 

Trocando em miúdos, eis que a realidade nos impõe, de um lado, a proliferação do trabalho precário e incerto, prestado a um “patrão” sem rosto e sem sede, por meio de um aplicativo; de outro, uma quarentena necessária para conter a pandemia, o que força a paralisação da economia global. No meio, uma sociedade desprovida de suas políticas de proteção social – que se materializam pelos direitos trabalhistas e previdenciários.

Para a maior parte da sociedade brasileira existe um horizonte nebuloso de escassez: a fome (a possibilidade de comprar e estocar comida não é igual para todos), a falta de hospitais e equipamentos e, nesse momento crucial, a falta de água (uma realidade cruel nas favelas e comunidades periféricas), que dificulta a adoção da recomendação mais simples apresentada pelas autoridades, qual seja, lavar as mãos com frequência. 

Não bastassem esses dramas, as “soluções” (im)postas no campo econômico, por sua vez, são elaboradas segundo a lógica da manutenção da produtividade dos negócios, quando se sabe, e não por instinto, que quem movimenta a economia é o trabalhador. É o seu esforço diário e concreto que materializa os bens e serviços de que a sociedade usufrui. 

É importante que examinemos a crise atual como um problema de classe, pois suas repercussões mais graves incidem sobre um grupo específico de pessoas. Dessa forma, o indivíduo deve ser visto como parte integrante de sua classe e não mais como empresário de si, único responsável pela sua sorte e fracasso. 

O trabalho assalariado carece, portanto, ainda mais agora, de significado e de defesa veemente.A reflexão urgente sobre a crise atual e o futuro que dela decorrerá é aquela que devolve o trabalho para o centro do debate, com assento privilegiado para a classe trabalhadora e seus problemas concretos. As respostas que se resumem a incentivos para empresários, sem contrapartidas que assegurem quem está no “chão da fábrica” e sob risco de causarem danos irreparáveis à saúde de todos, podem aniquilar a produção e, com ela, toda a capacidade de “lucro” das empresas e arrecadação dos governos.

É nítido e incontroverso que todas as vidas importam, sendo falsa a disputa entre “vidas x economia”. Apenas aqueles que enxergam o trabalhador como um sujeito descartável, um mero insumo na produção, podem defender a abjeta posição contrária. Essa forma de olhar a crise nos obriga a pensar na nossa própria coletividade, que é a única forma de superarmos os desafios desses tempos.

Chegamos ao momento em que a liberação dos trabalhadores do trabalho, com garantia de emprego e renda, é a única forma de usufruirmos da eficácia da quarentena, tenha ela a duração que se fizer necessária para salvar vidas. A gente não quer só trabalho, a gente quer estar inteiro nessa jornada.

*Dani Monteiro é deputada estadual pelo PSOL/RJ

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum