O fechamento de um governo acuado – Por Josué Medeiros e Fernando Stern

Bolsonaro sabe que mesmo enfraquecido tem bases orgânicas, conserva apoio em parte do empresariado, sobretudo nas cidades menores e ainda é capaz de mobilizar as baixas patentes das Forças Armadas e das polícias militares.

Foto: Presidência da República.
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Por Josué Medeiros e Fernando Stern *

Não é fácil interpretar os acontecimentos de segunda e terça-feira, 29 e 30 de março, quando a curta história do bolsonarismo no poder no Brasil teve dois dos seus dias mais dramáticos. Como é sabido, a esperada saída do vergonhoso chanceler Ernesto Araújo foi sucedida por outras cinco trocas ministeriais, incluindo a retirada do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa. No dia seguinte, a crise se aprofundou com o pedido de demissão dos três comandantes das Forças Armadas.

Identificamos duas linhas principais de interpretação entre as forças progressistas e democráticas: aquela que chamamos de alarmista, que apontou para uma iminente tentativa de golpe militar clássico; e outra que denominamos triunfalista, que viu nos acontecimentos o tão esperado derretimento do governo Bolsonaro.

Em paralelo, muitas vozes buscaram organizar os acontecimentos evitando essas interpretações definitivas. Barbas de molho, canja de galinha e nada de comemorar uma vitória que ainda não veio, nem de anunciar uma catástrofe definitiva. Nosso objetivo com esse texto é nos somarmos a esse esforço.

A primeira dimensão a ser destacada é o enfraquecimento recente do governo. Vale lembrar que Bolsonaro sai do dia 1° de fevereiro muito fortalecido pelas vitórias na eleição da Câmara (em 1° turno!) e do Senado. Com tal blindagem institucional, esperava-se que a Presidência ajustasse o processo de vacinação e viabilizasse uma nova rodada do auxílio emergencial, consolidando, com isso, uma narrativa de saída da crise sanitária e econômica.

Nada disso aconteceu. Em março o Brasil viveu seu pior mês pandêmico. Batemos recordes macabros de mortes diárias. O sistema de saúde colapsou em todo o país. Os efeitos disso na economia são devastadores. O quadro mudou drasticamente: hoje podemos falar de um governo e de um presidente que não têm mais aliados na comunidade internacional e vêm perdendo popularidade e apoio de setores econômicos e institucionais importantes. Além disso, com a recuperação dos direitos políticos do presidente Lula, pela primeira vez Bolsonaro tem um adversário à altura na esfera pública. Os impactos do histórico discurso de 10 de março, quando Lula se contrapôs ao atual mandatário em palavras e gestos, ainda se fazem sentir na política brasileira. 

Em suma, trata-se de um governo que está acuado. E é exatamente por isso que Bolsonaro reage atacando e avançando mais uma vez contra as instituições e contra a sociedade, tal qual um animal que se sente encurralado. Ele sabe que mesmo enfraquecido ainda tem bases orgânicas nos centros urbanos; ainda conserva apoio em parte empresariado, sobretudo aqueles das pequenas e médias cidades; e ainda é capaz de mobilizar setores das Forças Armadas e das polícias militares, sobretudo das patentes mais baixas.

É nesse sentido que ele reorganiza o governo, não para atender o chamado centrão, mas sim para pressionar seus ministros por mais lealdade e futuros apoios à radicalização. Quem lê os acontecimentos como uma simples vitória do centrão sobre um governo que “derrete”, segue no erro de achar que dá para moderar Bolsonaro, seja via STF, empresários ou Congresso. O governo parece estar se fechando em si mesmo, com quadros ainda leais ao presidente nos postos estratégicos. Aliás, parece ser exatamente pelo risco de derreter que ele está reagrupando a "tropa" para tentar algum movimento novo.

O modelo dessa mudança já havia sido ensaiado na troca no Ministério da Saúde. Sai Pazuello e Bolsonaro recusa duas indicações do centrão para escolher alguém do seu círculo íntimo. Com isso garante que a linha siga a mesma, contra qualquer tentativa de lockdown pelos governos estaduais e prefeitos. Assim como na Saúde, tudo seguirá igual na Justiça, nas Relações Exteriores e na AGU. No máximo será menos estridente, mas sempre prontos a dar apoio institucional, jurídico e policial aos planos do governo.

Na esfera militar, os conflitos vão piorar em qualquer hipótese. Ou o novo Ministro enfrenta Bolsonaro, o que não parece ser a vocação de Braga Neto ou o que veremos será, mais cedo ou mais tarde, alguma tentativa de uso, por parte de Bolsonaro, das Forças Armadas contra a sociedade. Não por acaso os três comandantes militares entregaram seus cargos, fato inédito na História da República. Embora fossem apoiadores de Bolsonaro, estes não estavam dispostos a se subjugar aos desejos e devaneios do ex-capitão.

Mas e o centrão? Esse escolheu um ministério central na coordenação do governo para liberar as emendas. Desde Cunha que os parlamentares aumentaram muito o seu poder sobre o orçamento. É para garantir isso que o centrão topou a Secretaria de Governo. Ou seja, não foi atendido pelas outras mudanças.

Observando as mudanças é impossível negar que mesmo que concordemos que ele não tenha força para um golpe, o estrago será enorme. Imaginemos que ele tente decretar um Estado de Sítio ou intervenção federal em algum estado, ainda que o Congresso vote contra ou o STF impeça, o estrago já estaria feito em termos de fechamento e enfrentamento aberto nas ruas.

Se alguém ainda duvidava do interesse do bolsonarismo por concentrar poderes na mão do presidente, essa dúvida se esvaiu quando, na mesma terça-feira em que os comandantes militares pediram para sair, o líder do PSL na Câmara tentou pautar projeto de lei autorizando Bolsonaro a decretar uma “Mobilização Nacional”, o que permitiria entre outras coisas que o presidente assumisse o controle dos insumos no combate à pandemia e o comando das polícias militares e civis dos estados.

Essa ação teria como principal alvo os governadores não alinhados, em especial os do Nordeste. São três razões que apontam para isso: 1 – São a principal base eleitoral do Lula; 2 – Muitos têm PMs com histórico de motins e rebeliões; 3 – São em geral economicamente mais frágeis que os estados do Sul e Sudeste. 

Bolsonaro aceitou a vacina, mas quer mostrar força contra qualquer coisa que lembre um lockdown. Primeiro tentou via STF e Congresso sabendo que seria derrotado. Com isso pôde dizer que o "sistema" impede a economia de funcionar, o que justifica uma ação mais firme. Em suma, às vésperas de mais um aniversário do golpe de 64, ele dobra a aposta. Os próximos dias e semanas serão de impasse entre um governo acuado que se fecha e prepara um novo ataque e uma sociedade que, embora veja crescer os setores que se opõe ao governo, segue devastada pela pandemia, pelo desemprego, pela fome e não tem forças para tirar Bolsonaro do poder.

*Josué Medeiros é professor de Ciência Política da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ e é coordenador do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (NUDEB). É ainda diretor da Associação Docente da UFRJ (AdUFRJ) e coordenador do Observatório do Conhecimento.

*Fernando Stern é psicólogo e coordenador de comunicação digital e relacionamento com o cidadão da Prefeitura de Niterói.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.