O fuzil e o sonho – Por Normando Rodrigues

A divisória física entre “fuzis” e “feijões” só fica de pé porque se sustenta no apoio do pobre-sem-feijão aos ricos-com-fuzis

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Por Jorge Normando Rodrigues*

Aliado a um presidente fascista clássico, como tal destituído de qualquer respeito por seres humanos, temos um ministro da economia neoliberal absolutamente insensível à fome e à miséria.

Mas, ainda assim, o Brasil está pleno de alienados, buscadores de uma “terceira via” insípida, inodora e incolor, como se também não tivéssemos que enfrentar os fuzis de Bolsonaro.

Alienados

Seis anos depois de defender as oligarquias rurais na Revolução de 1932, contra a “modernização forçada” de Vargas, Orígenes Lessa cometeu uma quase autocrítica de sua alienação política em “O feijão e o sonho”.

Vale alertar que a didática oposição entre pragmatismo e idealismo, no romance de Lessa, é intencionalmente falsa. Não existe utopia sem “feijão”, do mesmo modo como a vida sem “sonho” é mera sobrevivência.

Intelectuais fora da realidade, como Lessa, Monteiro Lobato e Alcântara Machado, não eram uma “jabuticaba” naquela época, e nem o são hoje. Muitos contribuíram para a ascensão do fascismo na Itália e na Alemanha, assim como no Brasil.

Imbecilidade

Porém, a imbecilidade é sempre pior do que o alheamento, e a memória da Guerra Civil de São Paulo, de 1932, é em 2021 reivindicada por diversas organizações fascistas.

São os mesmos imbecis que irão à “Marcha sobre Brasília” no 7 de setembro, da qual a “Caminhada sobre a Paulista” é a versão disponível ao suprassumo da idiotice: o fascista pobre, que não tem dinheiro para ir ao Planalto.

Esses e outros despossuídos defenderão, no “Dia da Pátria”, a liberdade dos 315 bilionários brasileiros (eram 70 a menos, no início da pandemia) se protegerem com fuzis apontados contra os que não têm feijão.

“Essa gente”

A arte fascista do antagonismo permanente entre os que não têm feijão, e os que se protegem com fuzis, consiste em traçar com cuidado a linha “física”, divisória entre os dois grupos.

Bolsonaro sempre foi franco quanto a isto, como comentou no 28 de agosto, ao ver as manifestações indígenas no eixo monumental: “essa gente quer voltar ao poder”.

“Essa gente” é uma variante da ruptura fascista entre “nós” e “eles”. Expressa a revolta dos “fuzis” contra 13 anos de vinheta da “Voz do Brasil” - a abertura de “O Guarani”, de Carlos Gomes - cantada por coral indígena.

Severinas

A divisória física entre “fuzis” e “feijões” só fica de pé porque se sustenta no apoio do pobre-sem-feijão aos ricos-com-fuzis.

E, por sua vez, o apoio do pobre-sem-feijão aos ricos-com-fuzis ignora que, para o Mito, “essa gente” inclui outros tipos de “índios”: “comunistas”, “vagabundos”, “feministas”, “viados”, “deficientes”, “negros” e, no fim das contas, o próprio pobre.

Como no “Morte e vida Severina”, de João Cabral, a parte do pobre no latifúndio dos fuzis é o projétil “achado” que transforma um peito vivente em “perdido”, ou a bala “perdida” que acha a cabeça de seu filhinho brincando na porta de casa.

Concubinato

No entanto, além dos diversos tipos de “índios”, nossa versão bufa da Marcia su Roma – a de Mussolini, em 1922, também era originalmente circense – ameaça ainda o concubinato entre fascismo e neoliberalismo.

Dois dias após o “essa gente” de Bolsonaro, a icônica Faria Lima amanheceu com figuras de Paulo Guedes como “Faria Loser”. Sincronicamente, Globo, Record, Estadão e Folha, dedicaram-se a espancar o escroque.

Talvez os “farialaimers” tenham começado a desconfiar que o monstro fascista é inimigo não só do “sonho” igualitarista do trabalhador, como do “feijão” pragmático do empresário.

Oposição

O fato é que a tomada do Palácio do Planalto pelo fascismo desatualizou a falsa divergência entre “o feijão” e o “sonho”. Pragmatismo e idealização são atributos de sociedades civilizadas, e não de hordas bestializantes.

Trata-se, agora, de combater os “fuzis”. Com muito “feijão”, e com muito sonho.

*Jorge Normando Rodrigues é assessor jurídico do Sindipetro-NF e da FUP

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.