O que a Bolívia ensina para a esquerda hoje? Por Vivi Mendes e Alexandre Pupo

Quando o povo vai às urnas, ele derrota os projetos neoliberais que lhes é imposto à força. Nas urnas, os projetos de corte de direitos, austeridade, autoritarismo e conservadorismo não conseguem se sustentar

Luiz Arce, presidente eleito da Bolívia, e Alberto Fernandez, presidente da Argentina, com a bandeira Whipala (Reprodução/Twitter)
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Por Vivi Mendes* e Alexandre Pupo**

Há quase um ano, no final de novembro de 2019, assistimos ao golpe de estado que derrubou o presidente reeleito Evo Morales na Bolívia. Com apoio externo, principalmente pelo interesse estratégico das empresas de tecnologia norte-americanas no lítio boliviano, a elite local junto com o exército e a polícia impediam o primeiro presidente indígena do país a assumir o seu novo mandato presidencial. As cenas ficaram marcadas na história do nosso povo latino-americano.

Com uma bíblia debaixo do braço, a senadora Janine Áñez entrava escoltada por policiais e congressistas de oposição ao palácio de governo e afirmou: “a bíblia volta ao palácio”. Esse episódio coroou um processo de golpe que começa com a não aceitação dos resultados eleitorais que garantiam ao MAS – Movimiento al Socialismo mais 5 anos de governo nacional. Baseados em relatórios da OEA (Organização dos Estados Americanos) que afirmavam irregularidades no processo eleitoral, a direita boliviana saiu às ruas atacando militantes do MAS, ministros, prefeitos, em cenas terríveis envolvendo escrachos públicos, torturas e perseguição a jornalistas. Em meio a pressões das Forças Armadas para que renunciasse, Evo Morales foi forçado a deixar o governo e se exilou no Argentina. Junto com ele, centenas de dirigentes do MAS, congressistas, senadores e militantes.

Entretanto, a luta dos povos não para e o dia de ontem (19/10) garantiu não só o retorno à democracia na Bolívia, como também uma retumbante vitória do partido de Evo Morales nas eleições nacionais. No meio da noite Janine Ánez como presidenta interina, não pode mais deter a resposta popular das urnas. Mesmo com as jogadas do governo golpista de suspender a contagem preliminar dos votos e segurar o resultado da boca de urna até a meia-noite de ontem, os resultados eram avassaladores.  Ánez cumprimentava a eleição de Luiz Arce, o candidato do MAS, após a divulgação das pesquisas de boca de urna do instituto Ciesmori indicavam a vitória em primeiro turno com 52,4% dos votos contra 30% do ex-presidente de direita, Carlos Mesa.

As últimas pesquisas eleitorais já indicavam a liderança de Arce, ex-ministro de finanças e economia do presidente Evo Morales, mas a possibilidade de um segundo turno preocupava a esquerda. Ao longo do processo eleitoral outros candidatos direitistas, como a própria presidenta interina, retiraram sua candidatura em favor de Carlos Mesa, num esforço de impedir a vitória da chapa de Arce. Mas como disse Morales em seu discurso nesta madrugada diretamente da Argentina, de onde acompanhou à distância as eleições: “a dignidade e a liberdade do povo foram devolvidas”. Em menos de um ano o povo boliviano venceu o golpe e impôs uma vitória gigantesca nas urnas contra o golpismo fundamentalista. O MAS, além de ganhar a presidência da República, conquistou também maioria parlamentar na Câmara dos Deputados e no Senado.

Ao lado da Argentina, México e do Equador – que ontem conquistou no tribunal eleitoral o registro da chapa da Revolución Ciudadana de Rafael Correa para as próximas eleições –, a Bolívia deixa claro que o ciclo das esquerdas na nossa região foi retomado. As tentativas de desestabilização, os golpes de Estado e as fraudes eleitorais que interromperam brevemente os governos progressistas e de esquerda na região, estão se mostrando insustentáveis. Quando o povo vai às urnas, ele derrota os projetos neoliberais que lhes é imposto à força. Nas urnas, os projetos de corte de direitos, austeridade, autoritarismo e conservadorismo não conseguem se sustentar.

Mesmo exilados, os dirigentes do MAS conseguiram organizar a luta popular e o processo eleitoral boliviano. Um candidato unitário das forças de esquerda e progressistas, um trabalho de base incessante e um compromisso com o projeto que gerou o mais longo ciclo de crescimento econômico e inclusão social na Bolívia, pavimentaram a vitória eleitoral de ontem.  A América Latina pulsa e os resultados da luta pelos quatro cantos do continente nos mostram que o ciclo conservador é breve, o povo conhece quem governo com ele e sabe que é apenas com os nossos governos que a América Latina pode se colocar de pé mais uma vez.

*Vivi Mendes, 31 anos, é advogada criminalista, militante feminista e dos direitos humanos. Foi gestora de políticas para mulheres na Secretaria de Políticas Municipais para Mulheres na gestão Fernando Haddad em São Paulo e é candidata a vereadora pelo PT.

**Alexandre Pupo é advogado, mestrando em sociologia na USP e faz parte da direção nacional da juventude do PT