O suicídio indiano, por Amit Singh

Atualmente, cadáveres estão espalhados por toda a Índia – majoritariamente, trabalhadores e trabalhadoras imigrantes e pobres. Depois de dois meses de lockdown, enquanto desesperadamente tentavam voltar às suas casas, morreram de exaustão, fome, ataque cardíaco, acidentes, entre outras causas

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Por Amit Singh* / tradução de Pedro Ribeiro da Silva*

Atualmente, cadáveres estão espalhados por toda a Índia – majoritariamente, trabalhadores e trabalhadoras imigrantes e pobres. Depois de dois meses de lockdown, enquanto desesperadamente tentaram voltar às suas casas, morreram de exaustão, fome, ataque cardíaco, acidentes de viação, entre outras causas. Suas vidas, vidas expostas cruamente, não são dignas nem de luto e nem de aflição – ao menos para o governo e a classe média alta, que se referem a eles (junto dos muçulmanos) como propagadores do coronavírus na Índia. A maioria dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes ficou desempregada desde o lockdown nacional imposto há dois meses, despoletando o maior movimento de migração intranacional visto na Índia desde 1947.

Enquanto o lockdown é estendido, surge nas redes sociais a hashtag #MigrantLivesMatter, propondo-se a chamar atenção para a crise humanitária que ronda largamente o país. Vídeos circulam a internet mostrando o sofrimento desses trabalhadores. Num deles, vê-se uma criança tentando acordar sua mãe já morta numa estação de comboio. A mulher era uma entre as trabalhadoras migrantes que chegaram até Muzaffarpur num trem especial para trabalhadores, que partiu de Ahmedabad. Ela morreu devido ao calor, à fome e à exaustão, ainda a bordo do trem, no dia 25 de maio. Devido à inexistência de água e comida a bordo e longos atrasos (que chegam a atingir 40 horas) muitos podem estar, neste momento, a morrer nesses comboios.

Subitamente, o primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu, impôs um lockdown no dia 2 de março, que se fez valer à totalidade da população indiana – foi feito sem planeamento ou consulta popular, em apenas quatro horas. Esse caos organizado governamental levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e a exclusão da população marginalizada da sociedade indiana.

Os mais atingidos pelo lockdown fazem parte da população mais pobre do país – migrantes temporários, cujo o número se estima em mais de um cento de milhão. Dentro de dias após o anúncio do lockdown, surgiram crônicas perturbadoras sobre a morte de migrantes, que morriam de fome, fadiga, acidentes, enquanto tentavam atravessar jornadas traiçoeiras – algumas de mais de 1.000 km andados a pé – das cidades até suas aldeias de origem.

Os terminais de autocarro no interior das cidades e nas fronteiras entre estados se tornaram lugares de violentos choque entre migrantes e a polícia – esta recorria à violência brutal, espancando migrantes por violarem as ordens do lockdown. A quantidade de violência estatal feita em nome da proteção do povo contra o povo é simplesmente ridícula, bizarra e inaceitável – seja por qual critério for. Sataria Hembrom, 31, caminhou 1.800 km até seu vilarejo em Chaibasa, tendo partido de Mumbai com mais seis pessoas. Dezesseis trabalhadores migrantes foram atropelados enquanto dormiam nos trilhos do trem perto de Aurangabad. Muitos migrantes têm usado os trilhos como forma de navegarem até seus lares, através do duro verão indiano.

Foram reportadas as mortes de mais de 300 pessoas, diretamente relacionadas ao lockdown: mortes causadas pela fome, pela dificuldade financeira, pela exaustão, pela violência policial, pela falta de atendimento médico. Há relatórios que informam a morte de 338 pessoas entre 19 de março e 2 de maio, todas relacionadas ao lockdown.

No dia 9 de maio, a polícia recorreu à violência contra centenas de migrantes, enquanto estes passavam através das ruas no distrito de Surat, em Gujrat, protestando por condições para que voltassem às suas casas ou emprego para que conseguissem dinheiro. Mais de 100 trabalhadores foram detidos. É interessante notar que muitos estados tentaram impedir os trabalhadores que voltassem às suas casas. O governo de Karnataka retirou o pedido de comboios especiais, pois imaginou que isso geraria escassez de mão de obra no estado.

Muitos estados indianos, como Uttar Pradesh, Madhya Pradesh e Gujarat avançaram em emendas às leis trabalhistas, aumentando as horas de trabalho de 8 para 12 horas diárias. Isso significa a destruição dos direitos trabalhistas básicos. A Organização Internacional do Trabalho expressou “profundas preocupações” em relação às mudanças, fundamentalmente opostas aos direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes. De acordo com o economista chefe do FMI, Gita Gopinath, a Índia gasta apenas 1% de seu PIB em medidas de socorro contra o coronavírus – o que mostra que o governo não está fazendo o suficiente.

Enquanto cresce o número de infectados, também cresce a miséria dos migrantes. O caso indiano faz-nos pôr em questão a efetividade de estados “democráticos” na proteção dos direitos dos marginalizados e vulneráveis em tempo de crise. O lockdown indiano mostrou ser uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal. Mesmo que milhões de migrantes ainda participem dos destinos do Estados indiano, o nível de descaso e violência mostram que, na verdade, eles foram excluídos do sistema político – expulsos para os lugares da indiferença e da abjeção.

No momento em que termino este artigo, muitos mais trabalhadores migrantes morrem em lugares remotos, mortes as quais muitas nem serão noticiadas pela imprensa tradicional. Os pobres são forçados a terminar a própria vida, da forma mais desumana. O primeiro ministro Narendra Modi deve ser responsabilizado por esses suicídios. A crise da Covid-19 é uma dádiva a líderes autoritários, permitindo-lhes brincar com a vida humana, em plena imunidade. O escritor Arundhati Roy disse: “Precisamos dos Julgamentos do COVID. Numa corte internacional”. Eu concordo – definitivamente.

*Amit Singh é investigador no Centro Para Estudos Das Línguas e Sociedade Indianas, doutorando no Centro De Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

*Pedro Ribeiro da Silva é estudante de filosofia na Universidade de Coimbra

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum