Ou a universidade se politiza ou desaparecerá, por Maria Carlotto

"Para reagir a essa crise inédita da educação brasileira, preservando e intensificando o processo de abertura que ocorreu no período recente, precisamos de um movimento forte de todo o setor de educação"

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Por Maria Caramez Carlotto*

O Brasil vive uma crise inédita e dramática no campo educacional, que antecede a pandemia, mas certamente se agravou com ela. Essa crise se estende para todos os níveis de ensino e tem sua causa principal no encontro entre o ultraliberalismo, que fez do Brasil um terreno de experimentação de medidas extremas como o Teto de Gastos, com o neoconservadorismo, que tem feito da intervenção política, da censura e do obscurantismo uma agenda para a educação e a ciência no país.

Esse encontro entre duas correntes só aparentemente contraditórias, tem no Bolsonarismo sua expressão mais atual, mas já era visível na articulação que levou Michel Temer ao poder, com apoio amplo no espectro político brasileiro, da tríade MDB/PSDB/DEM à bancada do Boi, da Bala e da Bíblia, onde estava Bolsonaro.

O resultado essencial dessa aliança é a tentativa de desmonte da educação pública no país tal como a conhecemos, se não desde a criação do Ministério da Educação, pós-1930, pelo menos desde a Constituição de 1988.

Apesar de se estender para todos os níveis de ensino, quero me concentrar, neste texto, em um deles: o ensino superior.

O ensino superior consolidou-se, historicamente, como o nível mais restrito e elitizado do país. Seu controle quase absoluto pelas elites locais, especialmente representada por homens brancos, fez do ensino superior, por muito tempo, uma “antessala do poder” no Brasil. Era através dele que se socializavam, unificavam e legitimavam as elites responsáveis por comandar as estruturas políticas, econômicas e culturais do país. Foi assim no Brasil Imperial, quando os egressos da Universidade de Coimbra e, pouco mais tarde, das Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo, tornaram-se o braço tecnopolítico do Estado nascente. Foi assim também na Primeira República, quando a Faculdade de Direito de São Paulo passou a praticamente a definir o acesso à vida política do país, em particular no seu posto mais alto: a Presidência da República. Foi assim no pós-1930, quando a profissionalização do Estado desenvolvimentista deu acesso privilegiado aos egressos do ensino superior no controle da burocracia estatal. E assim permanece até hoje, quando algumas carreiras de Estado, particularmente as que tiveram seu poder reforçado pela Constituição de 1988, como o Ministério Público e a Magistratura, dependem essencialmente da passagem pelo ensino superior, em particular nas suas escolas e universidades mais prestigiosas e, por isso mesmo, mais elitizadas.

É por essa configuração elitista do Estado brasileiro – que se espraia para a mídia e para a economia – que o ensino superior é um espaço tão importante para a dinâmica de poder da sociedade brasileira e, por isso mesmo, campo de batalha privilegiado para quem quer mudar a estrutura social do país.

A Constituição de 1988, no seu artigo 206, define os princípios básicos da educação nacional em todos os níveis e, no seu artigo 207, a organização básica das universidades: que “gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Mas talvez o mais importante seja o que está disposto no artigo 208, que normatiza o dever do Estado frente à educação, em particular o inciso V, [através da garantia de] “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.

Podia ser melhor, mas o fato é que a Constituição assegurou a importância de uma política de expansão do ensino superior no país e, de fato, a partir de 1988, o ensino superior no país cresceu ininterruptamente, embora com velocidades e perfis distintos a depender do período. E foram sobretudo quatro períodos, que podem ser descritos como segue:

No primeiro período, que vai até 1995, o ensino superior cresceu, mas a taxas muito lentas, impulsionado sobretudo pela expansão das universidades privadas que, aproveitando a autonomia outorgada pela Constituição Federal de 1988, passaram a atuar no sentido de expandir cursos em matrículas, aproveitando uma demanda latente na sociedade brasileira, inclusive entre camadas da classe média e classe média alta. Como resultado, as matrículas de universidades privadas passaram de 17% do total em 1985 para 30% do total em 1995. Ainda assim, as universidades públicas continuaram sendo, nesse período, as principais instituições de ensino superior do país e seguiram crescendo, ainda que a taxas mais lentas do que o setor privado, passando de 32% das matrículas em 1985 para 34% em 1995.  Em números absolutos, estamos falando de algo em torno de 1 milhão e 300 mil matrículas de ensino superior em 1985, chegando a pouco mais 1 milhão e 700 mil dez anos depois.

A posse de Fernando Henrique Cardoso e do seu único Ministro da Educação, Paulo Renato e Souza, em 1995, inaugura um novo capítulo na história do ensino superior brasileiro. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 já instituiu uma flexibilização, aprofundada pelo Decreto presidencial n?2.306, de 1997, que, em síntese, incentivou outros formatos institucionais que não só universidades a ofertar ensino superior e, ao mesmo, autorizou – num formato quase único no mundo – a operação de instituições não só privadas, mas também com finalidade de lucro, no ensino superior. A consequência foi a explosão de cursos baratos, de qualidade muitas vezes duvidosa, em faculdades e instituições isoladas, cuja finalidade essencial era a venda (lucrativa) de educação superior. Ao mesmo tempo, as universidades públicas enfrentavam uma crise dramática de financiamento, o que resultou numa redução da sua participação no total de matrículas. Surgia, assim, a configuração do ensino superior tal como predominou até recentemente: com o setor privado respondendo por cerca de 75% das matrículas de ensino superior. Em termos absolutos, esse foi um período de forte expansão, quando as matrículas totais mais que dobraram, passando de 1 milhão e 700 mil em 1995 para cerca 3 milhões e meio em 2002.

O terceiro período, que envolve os anos Lula e Dilma, inicia-se mesmo com a posse de Fernando Haddad no Ministério da Educação, em 2005. A partir de então, assistimos a dois movimentos paralelos. De um lado, o setor privado seguiu crescendo, impulsionado dessa vez por programas de democratização do acesso, em particular o PROUNI e o FIES que trouxeram, pela primeira vez, em massa, novas camadas sociais para o ensino superior. De outro lado, o ensino superior público – que concentra além da atividade de ensino, grande parte da pesquisa do país – voltou a se expandir, com criação de novas instituições, universidades e cursos. Ao mesmo tempo, esse setor público, que pelo seu peso na pesquisa, forma intelectuais e profissionais altamente qualificados, também de abriu e de maneira inédita. A expansão e interiorização de universidades e institutos federais, somou-se a mudanças no padrão de ingresso, com a universalização do ingresso via Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e, particularmente da Lei de Cotas de 2012.

O resultado da política do Partido dos Trabalhadores para o ensino superior é que a expansão vertiginosa se somou a uma democratização inédita do ensino superior no país, trazendo para dentro desse nível historicamente elitizado, novas camadas sociais, especialmente as mulheres, a população negra e os filhos da classe trabalhadora. De novo, em termos absolutos, as matrículas saltaram de 3 milhões e 900 mil em 2003 para 8 milhões em 2015. E no que concerne ao perfil socioeconômico, brancos que representavam 73,8% dos estudantes de ensino superior brasileiro em 2003 passaram para 42,3% em 2009. Já os negros (pretos e pardos) que representavam 25,1% dos estudantes em 2003, passaram a representar 35,1% em 2009, isso antes mesmo da Lei de Cotas de 2012. Depois disso, o movimento de democratização se intensifica, em especial no ensino superior público, com a população preta, parda e indígena chegando a responder por 42,7% das matrículas federais em 2016, contra 30,9% de brancos, segundo dados do INEP. Importante frisar, também, que na contramão do que aconteceu no governo Fernando Henrique Cardoso, o setor público voltou a crescer e a recuperar espaço, ainda que a taxas lentas em função, sobretudo, da velocidade de expansão do setor privado. Mas para termos uma ideia, as instituições federais representavam 13% das matrículas presenciais em 2005, subindo para 18% em 2016.

É essa pequena-grande revolução que foi posta em xeque pós-2016, quando se inicia o período Temer, seguido por Bolsonaro. Em termos históricos, é a primeira vez desde que o Censo da Educação Superior passou a ser publicado anualmente, em 1995, que as matrículas presenciais tiveram uma queda em termos absolutos: foram 79.262 matrículas a menos em 2016; 24.602 em 2017; e 135.437 em 2018. Ao todo, foram 239.301 matrículas perdidas em 3 anos. Em termos do número total de docentes, o movimento é semelhante. Ao todo, entre 2016 e 2018, o país perdeu cerca de 3.300 docentes de ensino superior. É pouco, perto dos quase 400 mil docentes que atuam no sistema hoje, mas é significativo, de novo, por ser a reversão de uma tendência histórica de expansão dessa categoria.

Esse movimento, de queda das matrículas presenciais e do total de docentes atuando no ensino superior brasileiro, está diretamente ligada à tendência de expansão do Ensino a Distância do país. Facilitado pelo decreto presidencial n? 9.394 de 2017, assinado por Michel Temer, o crescimento do EaD no país tem sido vertiginoso: em 2015, eram 1.393.752, enquanto em 2018, o EaD já respondia por 2.056.511 das matrículas do país, 92% delas no setor privado.

O EaD pode ser uma ferramenta importante de democratização do ensino superior, mas é preciso políticas específicas que garantam não só abertura de ingresso como, sobretudo, a qualidade mínima desse nível de ensino para que ele opere uma inclusão de fato. Relatos recentes sobre a demissão em massa de professores que estavam trabalhando com EaD durante pandemia no setor privado sugerem fortemente que a aposta no EaD, pelo sistema privado, está intrinsecamente ligada a uma estratégia de redução de custos e aumento da lucratividade. E isso particularmente em um contexto em que as restrições fiscais impostas especialmente via Teto de Gastos reduziram drasticamente o escopo do PROUNI e do FIES, restringindo, com isso, o movimento ingresso de setores mais pobres da população no ensino superior privado. No setor público, os cortes sucessivos do orçamento, estagnaram o crescimento e começam a surtir efeitos, atingido inclusive o orçamento do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que garantia a permanência desses alunos e alunas pobres, especialmente pretos e pardos, no ensino superior. Diante desse cenário, será que só vai restar às camadas mais frágeis da população brasileira o acesso ao ensino superior via um EaD rebaixado?

Embora ainda não existam dados disponíveis para 2019 e 2020, tudo indica que esse movimento de crise deve ter se intensificado desde o início do governo Bolsonaro e, mais ainda, durante a pandemia. Assim, é possível que estejamos vivendo uma mutação silenciosa e profunda no ensino superior brasileiro, com uma nova expansão vertiginosa do setor privado, através das matrículas EaD, e com a volta da estagnação, quando não redução, do setor público. Esse movimento terá impactos profundos para o processo de democratização desse nível de ensino que se consolidou nos anos Lula/Dilma. Isso porque, estávamos assistindo, pela primeira vez, uma expansão com democratização do acesso não só nas franjas do sistema, mas também no seu núcleo duro – as universidades públicas de pesquisa – que, pela sua qualidade, garantem acesso às posições de poder na sociedade brasileira. É contra isso que se voltam tanto os setores ultraliberais quanto os conservadores, numa aliança preserva para reverter um processo que tem o potencial de representar uma das mudanças estruturais que a sociedade brasileira viveu ao longo dos seus quase dois séculos como nação independente. De um lado, as elites que não querem perder seus privilégios de controle das posições-chave do Estado, da economia e da opinião pública. De outro, setores retrógrados que, diante da crise que arrasta a sociedade brasileira para a beira do abismo, só têm como resposta mais caos e destruição, num dramático salve-se-quem-puder.

Para reagir a essa crise inédita da educação brasileira, preservando e intensificando o processo de abertura que ocorreu no período recente, precisamos de um movimento forte de todo o setor de educação. O associativismo docente, em particular, precisa de uma renovação profunda, à altura das mudanças sofridas pelo ensino superior brasileiro, em particular a universidade pública, que nos últimos 20 anos se tornou mais feminina, mais negra e mais democrática. É essa nova universidade que precisamos defender, contra o desmonte, contra a censura, contra o obscurantismo e contra o elitismo. A responsabilidade de todos nós, especialmente professores e professoras de ensino superior é enorme. A crise se aprofunda e o tempo da neutralidade e da passividade acabou. Ou a universidade pública se politiza, à altura do momento, e defende o seu papel social na democratização da sociedade brasileira, ou desaparecerá. 

*Maria Caramez Carlotto é doutora em sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC