Pela vida de todas as mulheres, incluindo as com deficiência, por Sol Massari

"Entre os movimentos feministas, é comum discutirmos a violência doméstica, a sexual, a psicológica, a econômica, a étnica, a violência pela identidade de gênero ou pela orientação sexual, mas raramente falamos da violência contra as mulheres com deficiência"

Reprodução/Observatório 3º Setor
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Por Sol Massari*

A pouco mais de um século, março se dá como símbolo da conquista feminina: é o mês da visibilidade da luta e da resistência da mulher.

Entre os movimentos feministas, é comum discutirmos a violência doméstica, a sexual, a psicológica, a econômica, a étnica, a violência pela identidade de gênero ou pela orientação sexual, mas raramente falamos da violência contra as mulheres com deficiência. Por ser esquecida pelos movimentos, ela se torna violentada socialmente. Trazer esse recorte para o Mês de Março é pontuar que, antes de serem pessoas com deficiência, são mulheres e, portanto, devemos, em nome da sororidade, as unir a todas.

A sociedade desde sempre coloca a pessoa com deficiência num lugar a parte: as cidades foram sendo construídas para pessoas ditas “normais”, por exemplo. Em dados momentos da História, a pessoa com deficiência foi transformada em bobos da corte, para alegrar quem mantinha o domínio sobre os excluídos. Em outros, foram usados como oráculos, pois através da cegueira eram capazes de prever futuro de reis e rainhas. Na literatura grega, encontramos Tirésias, que adquire poderes de prever o futuro ao ficar cego e passa agir como um oráculo.

Em sua luta diária, a mulher com deficiência precisa, muitas vezes, provar que sua deficiência não a incapacita da vida cotidiana. No entanto, segundo a ONG Essas Mulheres, 68% das denúncias de violência a pessoas com deficiência se referem a mulheres, e esse número salta para 82% quando se trata de violência sexual. Já no Estado de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública registrou, entre os anos de 2014 e 2018, 15.770 atendimentos a Pessoas com Deficiência, e as mulheres representavam 63,4% das vítimas de crimes sexuais.

Não é apenas a violência sexual que marca a vida das mulheres com deficiência. A negação das necessidades e negligência intencional, a retenção de aparelhos de mobilidade, os equipamentos de comunicação ou medicação, a ameaças para negligenciar ou cancelar apoios ou animais assistentes, a colocação de mulheres em desconforto físico ou em situações constrangedoras por longo período de tempo, ameaças de abandono acometidas por cuidadores, as violações de privacidade, entre outros inúmeros tipos de violência que sofrem, desamparadas pelo Estado e pela própria sociedade, simplesmente por ser mulher e por ser deficiente. Assim, se nós mulheres ditas “normais” somos subjugadas o tempo todo, uma mulher com deficiência é vista como sem valor.

Para as que não possuem algum tipo de deficiência, sair de relacionamentos abusivos é uma situação árdua, devido a submissão que se encontram. Em outras palavras, as diversas barreiras impostas, como a dependência financeira, emocional, medo, estigmas, solidão é uma realidade inquestionável, mas é preciso se perguntar: como isso se dá na vida das mulheres com deficiência, que se deparam com as barreiras atitudinais?     

Como uma mulher surda se comunica numa delegacia, por exemplo, lugar em que não há um intérprete? Até mesmo antes de se chegar em uma delegacia despreparada, já enfrenta-se o fato de ainda termos poucos transportes públicos com acessibilidade, tornando-se mais um obstáculo e dificultando que estas mulheres possam usar tais serviços e/ou de fugir do abuso. No entanto, há um avanço a ser considerado: a promulgação da Lei 13.836/19, na qual obriga a delegacia de informar sobre a condição de deficiência da vítima nos boletins de ocorrência dos casos de violência doméstica, sendo incluída também na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).

Faz-se evidente a urgente necessidade de que a violência contra a mulher com deficiência não seja tratada apenas pela questão da deficiência, mas de reconhecer que há situações singulares às mulheres, nas quais são obrigadas a lutarem com maior resistência e de maneira invisível. Não é possível continuarmos neutralizando a questão de gênero ao tratar da violência para esse segmento da sociedade. É nesse sentido, portanto, que escrever sobre essa mulher é tão importante na luta pela garantia de direitos, pela vida e por todas. Porque enquanto houver uma mulher sendo submetida a violência, todas nós somos violadas.

*Sol Massari é assistente social, mestre em Serviço Social com recorte no direito da pessoa com deficiência, ativista pelos Direitos Humanos e pela Defesa da Mulher