Quando o lixo vale mais que a dignidade humana – Por João Paulo Martinelli

O sistema de justiça criminal precisa ser repensado. Com o excesso de casos irrelevantes entupindo os tribunais, falta tempo para cuidar de crimes realmente graves

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Por João Paulo Martinelli *

Qualquer pessoa minimamente sensível ficaria horrorizada ao ler a notícia de que dois homens foram presos e denunciados por terem subtraído, do lixo de supermercado, alimentos vencidos e descartados. O promotor de justiça responsável pelo caso resolveu denunciá-los pois, segundo a autoridade, o furto de lixo é fato grave que merece a reprimenda penal. O juiz, usando do bom senso, absolveu sumariamente os acusados; no entanto, a acusação, não satisfeita, recorreu ao Tribunal de Justiça, sob a alegação de que “não se pode usar o princípio da insignificância e do crime bagatelar como estímulo e combustível à impunidade”.

É estarrecedor saber que esse tipo de postura é recorrente. A miséria virou delito no Brasil e passar fome se tornou crime hediondo. Não basta a prisão indevida de pais e mães que praticam pequenos furtos famélicos, agora até o lixo tem valor patrimonial para fins de aplicação da sanção penal. Qual o objetivo de levar adiante esse comportamento arbitrário? O Estado que deixa um ser humano passar fome não pode persegui-lo para jogá-lo atrás das grades.

Um indivíduo desempregado, sem formação adequada para disputar uma vaga no mercado de trabalho, ao ser denunciado, terá maiores dificuldades de conseguir uma colocação profissional. Afinal, a sociedade das “pessoas de bem” rejeita quem tem passagem pela polícia, não importa o motivo da prisão. O encarceramento - e qualquer tipo de registro criminal - traz muitos prejuízos ao cidadão, que ficará sempre rotulado como um sujeito supostamente perigoso. Toda cautela é necessária antes de acusar alguém pela prática de infração penal.

O caso concreto do Rio Grande do Sul mostra a superação de limites para punir a todo custo. Quando alguém despeja alimentos, ou qualquer outra coisa, no lixo, há a abdicação sobre a posse ou a propriedade. Ou seja, a coisa passa a não ter dono. Tecnicamente, não há subtração de coisa alheia e, portanto, não há furto. Mesmo que se alegue a propriedade sobre o lixo, o valor total de, aproximadamente, R$ 50,00 (cinquenta reais) é penalmente irrelevante. Deve-se, de acordo com a jurisprudência do STF, aplicar a insignificância do fato.

Ademais, o direito penal deve sempre ser a ultima ratio na resolução de conflitos. É dizer, a lei penal só deve ser utilizada para resolver um problema quando outros meios disponíveis não forem suficientes. Antes de fazer uso da repressão criminal, o Estado deve saber qual a causa daquilo que se pretende combater. Não se enfrenta a fome com a lei penal. Ninguém se alimenta do lixo por maldade ou com dolo de provocar prejuízos a terceiros. Quem chega a essa situação degradante o faz por falta de opções e por desconhecimento dos danos que pode causar à própria saúde.

Aliás, alimentar-se do lixo composto por alimentos vencidos e descartados é perigoso somente à saúde de quem os digere. Não se vislumbra qualquer lesão patrimonial, a não ser que cheguemos à absurda conclusão de que o supermercado poderia vender o lixo e os acusados teriam prejudicado o lucro futuro. E não se deve ignorar que os produtos foram recuperados, devolvidos ao estabelecimento, novamente descartados e triturados. Ou seja, não ocorreu qualquer lesão patrimonial.

Vamos além. Qual a finalidade a ser alcançada com a aplicação de eventual pena? Vamos prevenir novos crimes punindo miseráveis esfomeados? Sequer se pode falar em retribuição, pois não houve qualquer mal praticado pelos acusados – a não ser o mal contra a própria saúde. Trata-se de pura vingança contra seres humanos que não possuem o privilégio de receber mensalmente seus vencimentos (muitas vezes acima do teto constitucional, com o recurso às verbas indenizatórias não tributáveis) e não podem desfrutar de longos períodos de descanso ao longo do ano. São somente desempregados que, diante da situação pessoal, caso tivessem empregos, estariam diariamente espremidos nos transportes públicos para receber remuneração insuficiente para uma vida digna.

O sistema de justiça criminal precisa ser repensado. Com o excesso de casos irrelevantes entupindo os tribunais, falta tempo para cuidar de crimes realmente graves. Ao invés de gastar energia com o que realmente importa, autoridades acabam por deixar de lado ilícitos que requerem um trabalho mais apurado e, como consequência, vem a prescrição. Qual a solução? Tornar o sistema mais racional? Não! Apresentar propostas para acabar com a prescrição como se tudo se resolvesse com a canetada do legislador.

Ao repensar o sistema de justiça penal, dois pontos precisam ter destaque: a realidade brasileira - e latino-americana - impõe uma interpretação diferenciada do conceito de crime e o encarceramento precisa ser reduzido com urgência. A pobreza não justifica, nem autoriza, a prática de ilícitos, no entanto, a lei penal não pode ser o principal recurso para resolver os conflitos decorrentes da fome. O Estado deve atuar para conceder dignidade aos indivíduos que dele fazem parte e só reprimi-los quando for realmente necessário.

*João Paulo Martinelli é advogado, mestre e doutor em Direito pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, e professor do IBMEC-SP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.