Quem quer ser Jesus Cristo?, por Alexandre Santos de Moraes

"No cenário atual, há duas pessoas que disputam o espólio dos símbolos de Jesus Cristo para cativar ainda mais os eleitores cristãos"

Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE
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Por Alexandre Santos de Moraes* Se tem um sujeito popular nesse país é Jesus Cristo. Entre católicos e evangélicos, cerca de 87% dos brasileiros são cristãos, o que eleva a divindade a uma posição de destaque. É bem verdade que há muitos “Jesus Cristos” em Jesus Cristo, mas a devoção permanece vívida no imaginário popular. Não é de se estranhar que, na ávida mendicância por popularidade, muitos políticos tentem emular seus símbolos. Não é novidade, diga-se de passagem: em sua famosa tela, Pedro Américo associou diversos símbolos cristãos ao Tiradentes esquartejado; Getúlio Vargas, em sua carta-testamento, seguiu o destino que lhe foi imposto e deixou a vida escrevendo que oferecia sua vida em holocausto em novo do povo brasileiro. No cenário atual, há duas pessoas que disputam o espólio dos símbolos de Jesus Cristo para cativar ainda mais os eleitores cristãos.  Bolsonaro saiu na frente. O sobrenome “Messias” não passa despercebido, ainda que seja para lavar as mãos. No slogan que adotou para a fabricação de si como presidente, a ideia de “Deus acima de todos” não chega a torná-lo parte da Trindade, mas faz da religiosidade um valor que parece orientar suas decisões. Não menos curiosa é a evocação do Evangelho de João sempre que se sente acuado, como se a verdade estivesse com ele ou fosse, ele próprio, a personificação da Verdade. Também são frequentes as intervenções em que diz lutar contra o establishment, tratado como poderoso Império que busca crucificá-lo por acolher quem precisa de ajuda.  Mas se essas e outras referências parecem demasiado genéricas, convém recordar algumas ocasiões em que Bolsonaro explorou essa imagem sem qualquer pudor. Em abril desse ano, ergueu um quadro com a imagem de Jesus Cristo acima de sua cabeça. No início de seu governo, compartilhou vídeo do pastor congolês Steven Kunda onde o religioso afirmava que Bolsonaro foi enviado por Deus para liderar um novo tempo. Além disso, estimula seu séquito a fazer o mesmo. Nas redes de WhatsApp, circula imagem que mostra o presidente assinando documento com a mão do próprio Cristo sobre a sua. Em maio do ano passado, o Ministro Ernesto Araújo, utilizando referências do Novo Testamento, disse que Bolsonaro seria a “pedra angular” do novo edifício que está sendo construído. Há muitos outros fatos, mas, como me falta onisciência, deixo apenas esses que me ocorrem. O grande problema é que o Cristianismo é uma religião monoteísta e não admite a convivência de dois deuses. Tampouco faria sentido existirem dois “Jesus”, o que abre espaço para um disputa bizarra contra a concorrência. Quando a Mangueira exibiu um Jesus Cristo negro, com sangue indígena e rosto de mulher no desfile de 2020, Bolsonaro correu para desmentir ser aquela a imagem adequada do Messias. Não sabia ele que essa releitura não teria tanto poder como Sérgio Moro, antigo aliado que se torna o concorrente. Não bastou a Sérgio Moro a pecha de “super-homem” encarnada em bonecos infláveis erguidos tantas vezes nos gramados de Brasília. Em seu discurso de demissão em 24 de abril desse ano, o ex-ministro de Bolsonaro decidiu enfrentar o antigo patrão também no terreno dos símbolos. Para isso, adotou a estratégia do sacrífico, uma das marcas mais poderosas do cristianismo ocidental. Logo no início de sua fala, recordou ter sido juiz federal por 22 anos. Aceitou largar a magistratura para se dedicar ao combate à corrupção fazendo uma única exigência: a concessão de uma pensão (sem previsibilidade legal) à sua família, caso fosse vítima de criminosos que teoricamente combatia.  Durante o discurso, qual vítima de um terrível sistema que ele sugeria desconhecer apesar de ser parte dele, Moro lamenta as razões de sua saída e diz que vai “procurar um emprego” e que não enriqueceu, quase em tom de lamento, como se essa não fosse a solução adequada a ele que, tal como Jesus Cristo, ofereceu a vida para redimir a sociedade brasileira daquele que parece ser seu maior pecado. Finalizou seu discurso dizendo que estará à disposição do país onde quer que esteja, sempre respeitando aquele que foi seu “mandamento”, ainda que não escrito em placa de pedra: “Fazer a coisa certa, sempre”.  A discussão ainda está viva. Bolsonaro não tardou para acusá-lo de traidor e usou a palavra “Judas” em tweet no dia 2 de maio, às vésperas do depoimento de Moro à Polícia Federal. Para atacar a concorrência, o presidente evocou a memória do apóstolo que entregou Jesus aos captores em troca de trinta moedas de prata e que, arrependido do seu ato, acabou se enforcando. Agora, são dois “Jesus Cristos” que disputam as orações do séquito fiel. Não é possível adular a ambos, afinal, com disse Matheus (6:24), “ninguém pode servir a dois senhores”, e essa competição entre falsos profetas persistirá através de símbolos da fé popular, da carência que surge das necessidades materiais, da esperança vã por um paraíso na Terra e a cura de todos os males. Em nome de Deus, seguem trabalhando de modo a causar inveja no mais terrível dos demônios.  *Alexandre Santos de Moraes é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) *Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.