Reforma tributária de Guedes torna Brasil ainda mais desigual, por Luna Brandão

"Projeto não se propõe a resolver o problema central do sistema de tributos do país: sua regressividade. Ao contrário, deve agravá-lo"

Paulo Guedes (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
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POR LUNA BRANDÃO*

A nova panaceia para a crise da economia brasileira, no discurso de integrantes do governo, congressistas aliados e representantes da classe capitalista em geral, tem nome e sobrenome: reforma tributária. Depois do Teto de Gastos, da reforma trabalhista e da reforma da Previdência, é ela quem terá o condão de melhorar o ambiente de negócios, recuperar a confiança dos agentes econômicos, destravar investimentos do setor privado e assim por diante. Aprovada, tudo dependerá do próximo item da pauta neoliberal, seja a redução de salários de servidores ou um novo pacote de privatizações. 

Mas o que está em jogo desta vez? Como, exatamente, essa proposta de reforma tributária prejudica os trabalhadores? Bem, a primeira parte do projeto, já encaminhada pela equipe do ministro Paulo Guedes ao Congresso, prevê a substituição de dois tributos recolhidos sobre a receita das empresas, o PIS e a Cofins, por um novo tributo sobre valor agregado, chamado de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). 

A troca, se confirmada, é uma péssima notícia para os estudantes. Isso porque a CBS elevaria a contribuição das universidades privadas, com ou sem fins lucrativos, à alíquota única de 12%. O resultado, segundo estudo do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), seria um aumento de pelo menos 10% no valor das mensalidades e a inviabilização do ProUni, que já garantiu bolsas de estudo a mais de 2,4 milhões de estudantes de baixa renda desde 2004. 

Ainda de acordo com os cálculos do Semesp, somados os que perderiam as vagas no ProUni com aqueles que não poderiam arcar com as mensalidades mais altas, o país perderia 322 mil alunos de ensino superior apenas no primeiro ano da reforma. Até 2030, o número de pessoas que deixariam de ingressar nas universidades privadas passaria de 1,6 milhão. Em termos monetários, a perda para seria de R$ 530 bilhões ou 7% de todo o Produto Interno Bruto (PIB), estima o sindicato. 

Outro problema dessa reforma motivou uma justa campanha em defesa do livro nas redes sociais. Pela proposta de Guedes, o setor, protegido do pagamento de impostos desde 1988, passaria a pagar a mesma alíquota de 12%. O fim da isenção encarece o valor das obras para os leitores e também ameaça a sobrevivência de toda uma cadeia de escritores, gráficos, editores, distribuidores e livreiros, que já trabalham com margens estreitas. 

Alheio a tudo isso, o “Posto Ipiranga” declarou simplesmente que a legislação atual isenta “gente que pode pagar”, como se o livro fosse e tivesse mesmo de ser um produto inacessível à maior parte dos brasileiros. 

Além de eliminar isenções fundamentais, o texto em discussão no Congresso não se propõe a resolver o que é reconhecido até por políticos e economistas de direita como o grande problema do sistema de tributos do país: sua regressividade. Em outras palavras, o fato de que, em termos proporcionais, quanto menos se tem, mais imposto se paga. 

Para facilitar a tramitação da proposta, o governo optou por deixar de lado o ISS, pago aos municípios, e o ICMS, pago aos estados – o imposto que mais onera o trabalhador brasileiro. As próximas etapas da reforma, antecipadas por Guedes e seus secretários, tampouco visam corrigir essa enorme injustiça. Pelo contrário, a principal proposta em gestação – a recriação de uma contribuição sobre transações financeiras, nos moldes da extinta CPMF – busca agravá-la. 

Matéria publicada na “Folha de S.Paulo” mostra que “o novo ‘imposto digital’ que o governo pretende criar deve ter peso maior para os mais pobres, ampliando a desigualdade tributária do país”. A distorção ocorreria por dois motivos, explica a reportagem. Em primeiro lugar, a alíquota torna-se muito mais alta quando chega às famílias, porque se acumula durante as várias etapas do processo de produção, e pesa mais sobre as famílias mais pobres, cuja cesta de consumo tem mais bens do que serviços.

O segundo motivo é amplamente conhecido e vale para a totalidade do sistema tributário brasileiro: a maioria dos trabalhadores gasta todo o seu salário no consumo de bens e serviços, sobre os quais incidem impostos como ICMS, ISS e IPI (e, antes, a CPMF), enquanto os mais ricos consomem somente parte de seus rendimentos, pois conseguem poupar. 

Por causa desses dois fatores, lembra o jornal citando estudo da economista Maria Helena Zockun, a parcela da renda total comprometida com o pagamento da CPMF era de 1% para as famílias que ganhavam acima de 30 salários mínimos e mais que dobrava (2,2%) para as que ganhavam até 2. No total, os mais pobres gastavam 51% de sua renda com tributos de todos os tipos, e os mais ricos, 27%, conclui a pesquisadora, lembrando que a estrutura tributária de hoje é a mesma de quando a CPMF estava em vigor. 

Deixando de lado a retórica sobre os milagrosos efeitos da “simplificação” do sistema tributário, é preciso responder ao argumento – equivocado – que associa a recriação do imposto regressivo ou o fim de desonerações que beneficiam a classe trabalhadora à necessidade de aumentar os gastos públicos. Muito se diz, inclusive, que a reforma tributária viabilizaria as obras do chamado “Pró-Brasil” ou a ampliação do Bolsa Família – agora que o presidente descobriu que o auxílio emergencial ao qual ele primeiramente se opôs melhorou seus índices de aprovação. 

Não se discute, na esquerda, que o governo deve pôr fim à sua insana política de austeridade fiscal, sobretudo depois que a pandemia jogou a já deprimida economia brasileira num buraco ainda mais fundo, rebaixando salários e eliminando milhões de postos de trabalho. Porém, qualquer tentativa de expansão investimento social ou em infraestrutura neste país está bloqueada pelo Teto de Gastos. Até que o Congresso desate essa amarra fiscal, nenhum dinheiro novo poderá impedir o processo de desmonte do Estado que começou com Michel Temer e se agrava com Jair Bolsonaro.

*Luna Brandão é educadora popular. Cientista política de formação e feminista com convicção, está nas redes sociais com o endereço @lunapramudarsp

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum