Saúde e economia: Deveres do Estado no combate ao coronavírus, por Ana Beatriz Prudente e Wagner Salomão

Independente do Estado ter limitações orçamentárias, é seu dever assegurar ao indivíduo que se encontra em estágio de vulnerabilidade social o auxílio material mínimo para a preservação da dignidade da pessoa humana

Foto: Animal Politico
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Por Ana Beatriz Prudente* e Wagner Salomão**

Diante de mais uma onda de ascensão de governos partidários do Estado mínimo, no qual encontramos até mesmo propostas de cortes de gastos públicos para atividades consideradas essenciais, mais uma vez a história vem, de forma avassaladora, mostrar o equívoco de políticas econômicas que colocam direitos fundamentais e sociais em segundo plano. A pandemia do coronavírus se transformou na maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, sendo que até o momento mais de 5 milhões de pessoas foram contaminadas por todo o globo, com o número aproximado de 350 mil mortes. Neste cenário catastrófico, grupos vulneráveis – aqueles que sofrem com o racismo imposto por suas sociedades - são desproporcionalmente infectados. Cite-se como exemplo o caso dos Estados Unidos onde a desigualdade estrutural faz com que a população negra e latina daquele país se encontre desproporcionalmente exposta ao contágio e à mortalidade advinda do novo coronavírus.

O caso brasileiro é mais que peculiar porque em algumas instâncias do poder público há uma negação da gravidade da pandemia e uma excessiva postura pró-mercado, posicionando-se sem qualquer base científica contra o distanciamento social. Chocam-se não só contra a medicina, mas também com a posição de governadores e prefeitos que, cientes da gravidade da situação, emitiram decretos que instituíam medidas temporárias e emergenciais para o combate ao novo coronavírus, incluindo entre as mesmas o fechamento do comércio e a interrupção de boa parte das atividades econômicas. Conseguiram, dentro de uma crise sanitária, promover uma das maiores crises políticas e institucionais de nossa história republicana.

Em sua defesa, os negacionistas da pandemia promoveram medidas e até mesmo campanhas publicitárias em prol de flexibilização do isolamento social, sob a justificativa de que a retomada econômica se fazia necessária.

Com uma visão estritamente economicista, foi defendida a volta ao trabalho em meio à pandemia a fim de que o país não se afundasse em mais uma crise econômica, haja visto que, segundo eles, o desemprego também poderia ceifar vidas. Porém, referido discurso, além de desconsiderar a preservação de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, mostra a omissão pública sobre assuntos de sua competência.

Primeiramente, há de se ressaltar que os direitos sociais, no qual se incluem o direito à saúde, fazem parte do que denominamos direitos humanos de segunda dimensão, o qual, para a devida efetivação, faz-se necessária uma prestação positiva do Estado, ou seja, uma atuação direta do ente estatal no seio da sociedade civil, sendo tais direitos assegurados no Capítulo II da nossa Constituição Federal. Entretanto, considerando a realidade da população brasileira, a qual aproximadamente um quarto vive abaixo da linha de pobreza, uma pergunta deve ser feita: o Estado brasileiro, em tempos normais, já assegurava o acesso a um sistema público de saúde de qualidade aos mais vulneráveis?

Não é preciso esforço para respondê-la, haja visto que é de conhecimento geral a grave crise da saúde pública brasileira. Ressalte-se que a importância do distanciamento social no cenário nacional deu-se, não só para preservar vidas diante de um vírus que ameaça a vida humana, mas, também pelo próprio fato do nosso direito à saúde não ser assegurado pelo Estado. A “volta à normalidade” diante de um cenário de pandemia poderia expor a suma maioria dos trabalhadores brasileiros – detentores de baixos salários e sem planos de saúde – à contaminação e até mesmo à morte -  tal situação colocaria em colapso o nosso já frágil sistema de saúde.

Outrossim, há de se ressaltar que o auxílio emergencial criado pela Lei Federal n° 13.982/20 para os que se encontram em situação de vulnerabilidade social decorrente da pandemia do coronavírus não é um favor promovido pelo Estado brasileiro, mas sim a sua obrigação. Destaca-se que, nos termos do artigo 6° da Constituição Federal, também se incluem entre os direitos sociais a alimentação e a assistência aos desamparados.

Independente do Estado ter limitações orçamentárias, é seu dever assegurar ao indivíduo que se encontra em estágio de vulnerabilidade social o auxílio material mínimo para a preservação da dignidade da pessoa humana.

E, por fim, resta a pergunta. E a economia? Ressalte-se que defender a abertura do comércio e a volta à normalidade por pressão do empresariado não é uma atitude responsável diante de um cenário de pandemia. Cabe ao Estado instituir linhas de crédito às empresas a fim de assegurar que os empregos formais sejam assegurados durante esse período, devendo esta ser a pauta do empresariado, qual seja, exigir a instauração de medidas econômicas por parte do Governo para amortizar a crise econômica.                  

O cenário advindo da pandemia do coronavírus mostra a importância do Estado junto à sociedade civil, sendo que neste momento faz-se necessário desembolsar recursos públicos, com a integração entre União, Estados e Municípios, tanto no auxílio à economia, mas, principalmente, para que vidas de brasileiros não sejam mais sacrificadas.

Etnia e coronavírus

Entre os grupos étnicos brasileiros mais impactados com a pandemia estão os indígenas, especialmente, os que vivem nas regiões do Mato Grosso do Sul e Amazonas, tanto que o estado amazonense é o primeiro do país a contar um hospital de campanha para atender esta população. Com 53 leitos exclusivos, o espaço fica na Universidade Nilton Lins, zona Centro-Sul de Manaus. Além de leitos de baixa e alta complexidade, o hospital comporta um local destinado aos pajés para respeitar os costumes indígenas.

O estado possui 470 casos confirmados entre índios e 29 óbitos, as etnias mais afetadas pela doença são: os Tikuna, Kocama, Baré e Satere-Mawe. Já em Dourados, no Mato Grosso do Sul, novo epicentro do Covid-19, quase metade dos infectados da cidade são indígenas. Um levantamento do Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul apontou que vivem na região mais de 83 mil indígenas. Os casos confirmados de índios doentes chegam a 74 (na cidade toda o número de infectados índios ou não é de 197). A maior parte da população indígena infectada é de homens (53%) e jovens entre 20 e 29 anos e se concentram, especialmente, nas aldeias de etnia Guarani/Kaiowá e Terena.

Uma triste realidade que preocupa autoridades, a população e os agentes de saúde.

*Ana Beatriz Prudente é gestora de Economia Criativa, Educadora de Mulheres Empreendedoras, Ativista pelo Empreendedorismo Social com Design Thinking,  Membro da Comissão Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP e Membro da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP

**Wagner Salomão é pesquisador na Faculdade de Direito da USP e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Lorena

***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum