Sertão abaixo de zero! A devoção do brasileiro à inteligência militar; por Henrique Rodrigues

O general que comanda a Saúde nos ensina sobre correntes escandinavas que congelam Petrolina e o general chefe do GSI posta seus dados pessoais na internet. Enquanto isso, os patriotas seguem firmes admirando a notável e sólida inteligência da caserna

Foto: Presidência da República (PR) / Ilustração
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Por Henrique Rodrigues*

Na semana em que o ministro da Saúde, um "general de quatro estrelas", disse que o Norte e o Nordeste são regiões do hemisfério norte e que o clima daqueles estados é regulado pelo inverno boreal, resolvi pensar a respeito de uma questão curiosa:

Essa nossa crença estúpida de que os militares são seres hiperinteligentes, probos, honestos e veneráveis, que nos salvarão do mal, conduzindo-nos ao paraíso, vem de quando?

O que se sabe, de fato, é que toda essa baboseira, ainda que levemos em conta o contexto histórico de diferentes períodos do Brasil, vem de muito, muito longe.

O tal Brasil pilhado pelos comunistas, com servos da pátria berrando maluquices na porta da FIESP, com pedidos de intervenção militar, misturando xingamentos a juízes, políticos, imprensa e imagens de Nossa Senhora Aparecida, como vimos nessa paródia de hospício em que o país transformou-se de quatro anos para cá, não é novidade.

Em 1964 foi a mesma coisa. Um Brasil que ansiava por reformas amplas e profundas, com uma elite pisando em seu povo e com o país cada vez mais loteado pelos senhores de engenho modernos, grande parte da tal "voz das ruas" clamava por botinas e uniformes verde-oliva, prontos para pôr sua imensurável intelecção a serviço do bem.

Eu sei que há um lastro enorme de evidências e fatos na História e na Sociologia que explicam o fenômeno.

Mas é estranho.

Em que pese toda a explicação histórica e sociológica séria e científica, não há como negar que a impressão é de um fetichismo incontrolável. Essa história de fardas mexe com a cabeça do povo de Pindorama.

Quando Antônio Conselheiro e o seu Arraial de Canudos ganharam a atenção do público, lá nos áridos rincões da Bahia, na passagem do século XIX para o XX, nossa opção não foi despertar para o grave problema fundiário do Brasil. Não houve manifestações populares e algazarra em apoio às demandas gritantes de um país desigual, pelo contrário.

Enviar os militares para massacrá-los, como resposta a uma delirante e falsa ameaça à República e pela manutenção dos privilégios da elite, foi a solução encontrada. Era mais um capítulo da inteligência castrense.

O desejo de Conselheiro de se estabelecer e organizar uma sociedade minimamente justa, lá onde Judas perdeu as botas, gerou nos setores populares da época a mesma indignação dos defensores de vidraças da Avenida Paulista.

Somos uma espécie de guardiões da fortuna da plutocracia, sempre zelosos na tarefa de preservar e manter nossa própria condição social precária.

Em resumo: somos os bobos, os insetos na luta pelo inseticida.

O general que comanda a Saúde nos ensina sobre correntes escandinavas que congelam Petrolina e o general chefe do GSI posta seus dados pessoais na internet. Enquanto isso, os patriotas seguem firmes admirando a notável e sólida inteligência da caserna.

Claro que não me refiro à totalidade dos militares. Nada nessa vida é absoluto e posso supor que há gente com repertório cultural vasto nas Forças Armadas. Mas as escolhas de Bolsonaro parecem não colaborar para que acreditemos nisso.

Sobre nossas preferências e inclinações, sigamos com a prosa…

Acho profundamente brochante quando fantasiamos, por uns poucos segundos, com uma revolução ou com uma postura combativa dentro das camadas mais baixas e intermediárias da nossa sociedade. Ninguém pensa em nada nesse aspecto que não envolva militares e a tal presunção fantasiosa da inteligência e do heroísmo deles.

Prezados (como diria o prolixo Sergio Moro), vocês acham mesmo que uma conflagração a la Revolución Mexicana iria rolar por aqui?

Bilionários e latifundiários que chupinham até alma de nosso povo iriam sair de suas privilegiadas posições de domínio para reivindicar mudanças na estrutura social brasileira, como fez Francisco Madero no México?

Creem mesmo que das colunas do Sul e do Nordeste sairiam homens como Pancho Villa e Emiliano Zapata, a bradar "Patria o Muerte", incendiando tudo que encontram pela frente, até a rendição da tirania?

Gente… Por aqui, nosso destino é mesmo ficar clamando por generais com polpudas pensões, erotizando tanques nas ruas, marchinhas coreografadas e muita violência autoritária.

Notem que, além de uma deplorável e humilhante ignorância, ainda temos um mau gosto terrível. Afinal, nada pode ser mais cafona e démodé do que essa tara ridícula e mofada por senhores usando aquelas roupinhas de brim em tons opacos, de óculos escuros e medalhinhas penduradas no peito, desfilando em veículos de combate sucateados e usando uns jargões que remetem à época da virilidade infalível de Jece Valadão.

Essa tosquice eterna, de clamar por generais para que nos salvem das horripilantes mazelas do Brasil (reais e imaginárias) vai continuar. Uma bobagem assim só é possível na cabeça de gente tão obtusa que jamais perceberá o tamanho da imbecilidade que está cometendo.

Alguém que se encanta com a inteligência desses senhores absolutamente pacóvios, que idolatra a abnegação e o desinteresse de uma classe que historicamente defende seus privilégios (os mais descarados da República) e que venera o passado de uma organização que já tomou o poder à força e cometeu tantas barbaridades ao longo do tempo, jamais notará o quão vergonhoso e infantil é esse comportamento.

Quando tudo isso passar (e vai demorar), tenham certeza que, na primeira crise, todos estarão prontos novamente para abrir as portas do quartel e pedirem a providencial ajuda desses heróis.

*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.