Tá pior, vai piorar: Magazine Luiza e a sororidade mercantil, por Laryssa Sampaio e Laura Wottrich

"Quando uma marca se vale de um contexto de absoluta fragilidade da mulher para adquirir visibilidade sem que cumpra com as expectativas que propõe, não contribui, mas atrapalha a luta das mulheres"

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Por Laryssa Sampaio* e Laura Wottrich*

A pandemia do novo coronavírus tornou o Brasil protagonista no triste ranking das nações mais afetadas, chamando a atenção do mundo pela irresponsabilidade no combate ao vírus e seus efeitos econômicos e sociais. A situação, que já é grave, se torna alarmante quando se é brasileira e mulher. 

Para as mulheres, os números do coronavírus se somam a uma estatística conhecida: a da violência de gênero. A precariedade sanitária e econômica, a incerteza, a deterioração psicológica no contexto de confinamento faz com que elas vivam uma pandemia silenciosa, com o aumento da violência perpetrada por seus parceiros. O lar, lugar mais seguro para se proteger do vírus, para as mulheres pode ser letal. Durante a quarentena, as denúncias de violência contra a mulher cresceram em 35,9% no país. Se as estatísticas já mostravam que um terço das mulheres assassinadas perde a vida dentro das suas casas, dizer que esses números aumentarão no contexto da pandemia soa não mais do que uma triste constatação.

Frente a esse estado das coisas, não foi sem entusiasmo que as redes sociais receberam uma postagem da empresa Magazine Luíza com a divulgação de uma funcionalidade seu aplicativo lançada em 2019, um botão para denunciar violência contra a mulher.

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Mediante os desafios no enfrentamento à violência de gênero durante a pandemia, a simpática influenciadora virtual Lu se dirige diretamente às mulheres e as orienta a fingir fazer compras no aplicativo da empresa para denunciar a violência sofrida no confinamento. O alento está no que a publicação deixa antever: ao simular compras, as mulheres vitimadas pela violência doméstica teriam finalmente um ambiente seguro para encaminhar uma denúncia, sem serem descobertas pelos parceiros, um risco concreto à integridade física das vítimas na condição de isolamento social.

Em uma ação empática e solidária, Lu se coloca ao lado das mulheres e faz pensar que ações podem ser reinventadas no combate à violência de gênero no contexto atual. A ação foi comemorada em matérias e postagens nas redes sociais, mas logo problematizada pela designer @lola_poppins_ no Instagram. Ao invés de uma denúncia silenciosa, o botão do aplicativo da empresa direciona a usuária para a discagem do número 180, central que acolhe denúncias de violência contra a mulher no país.

Imagine que você é a mulher, em situação de isolamento social com o seu agressor. Vocês estão em casa, sem poder sair. Sua casa é pequena. São poucos cômodos para vocês dois e seus três filhos. Ele a violenta mais uma vez. Fragilizada e em busca de uma saída com proteção, você recebe uma postagem do Magazine Luíza que promete uma forma de denúncia segura. Ao baixar o aplicativo - ponto para a marca! - você procura trêmula o botão de denúncia. Pensa e repensa se fará o clique, finalmente aperta. Três grandes números surgem na tela: 180. Você desiste, porque se expor a uma chamada telefônica não é uma opção.

Evidente quem perde e quem ganha nessa situação. A mulher perde seu tempo para baixar um aplicativo, além da esperança de finalmente ter uma saída para a violência que sofre. Já a Magazine Luíza, ganha matérias, likes, acessos e projeção. Não é possível desconsiderar o histórico positivo da empresa no enfrentamento à violência de gênero, com uma atuação consistente em múltiplos âmbitos. No entanto, nessa ação em específico, a conta ficou difícil de fechar.

Não é de hoje que se problematiza os limites da apropriação do feminismo pela lógica de mercado. Uma relação marcada pela contradição: se a publicidade é a mediação comunicacional da sociedade capitalista, o movimento feminista questiona, avidamente, as suas bases de sustentação, fundadas em uma lógica masculina e patriarcal. Aos solavancos e a partir da luta social cotidiana, as mulheres avançam no enfrentamento às desigualdades e ocupam espaços de representatividade, movimento que a publicidade, no anseio de se conectar com as consumidoras, tenta acompanhar.

No entanto, quando uma marca se vale de um contexto de absoluta fragilidade da mulher para adquirir visibilidade sem que cumpra com as expectativas que propõe, não contribui, mas atrapalha a luta das mulheres. No fim das contas, a postagem da influenciadora Lu inaugura uma nova categoria, a sororidade mercantil, em que a empatia é mobilizada por uma influenciadora virtual para promover uma marca e vender eletrodomésticos e outros utensílios.

Frente aos imensos desafios no contexto da pandemia, está a precariedade sanitária, econômica e social a que estão submetidas muitas mulheres. O enfrentamento à violência de gênero se torna ainda mais urgente nesse contexto, mas diante do avanço das estatísticas e da inoperância dos esforços para amparar as mulheres, só nos resta entoar a canção do pernambucano Alceu Valença: tá pior, vai piorar.

*Laryssa Sampaio é comunicadora popular e Laura Wottrich é professora da UFRGS

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum