Uma facção contra a democracia não pode se tornar a aliança pelo Brasil, por Douglas Zaidan

"Não se pode atribuir a condição de jogador àquele que não reconhece como válidas as próprias regras do jogo"

Bolsonaro e os filhos no lançamento do Aliança pelo Brasil (Reprodução/Facebook)Créditos: Reprodução/Youtube
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Por Douglas Zaidan* O aprofundamento da crise política que envolve o governo Bolsonaro tem exposto diversas questões centrais sobre as severas restrições da democracia no Brasil e, em especial, sobre o alcance da normatividade do direito na limitação do avanço autoritário. Para além das discussões sobre a violação à lei de segurança nacional e o cometimento de crimes de responsabilidade, a carreata em apoio ao Presidente que levou manifestantes a pedir novamente o fechamento do Congresso e do STF na aglomeração em frente ao Palácio do Planalto no último domingo trouxe um elemento novo à discussão sobre tais limites. Conforme noticiou o jornal O Estado de São Paulo, a manifestação do dia 03 de maio, da qual participou ativamente Jair Bolsonaro na rampa do Palácio, foi apoiada e organizada pela cúpula do partido Aliança pelo Brasil - cujo pedido de registro tramita no TSE. De acordo com a matéria, o empresário Luís Felipe Belmonte, segundo vice-presidente da agremiação bolsonarista, confirmou a informação de que o partido foi o responsável pela articulação entre diversas lideranças e movimentos de direita do país para que participassem e tornassem possível o evento. Tal qual o ato do dia 19 de abril, quando manifestantes pediram o fechamento do Congresso, do Supremo e a reedição do AI-5, a manifestação do último domingo foi marcada pela agressão a jornalistas e entoação de palavras de ordem de exaltação de Bolsonaro e contra os presidentes da Câmara e do STF, seus ministros e, agora, do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Aderindo ao movimento contra as instituições do Parlamento e do Judiciário, o chefe do Executivo voltou a falar em limite: “Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição”. Contudo, a ampla liberdade de expressão e o direito ao protesto, que alcançam a manifestação contra disposição de lei, acolhidos nos fundamentos da decisão do STF na ADPF 187, não conferem o mesmo grau de liberdade para atos contra a democracia organizados por agremiações políticas. A liberdade e autonomia dos partidos políticos para organizar-se e participar do processo eleitoral corresponde à adesão do partido ao regime democrático, seus princípios e suas instituições. Esse é o sentido que se extrai da leitura dos arts. 17 da Constituição Federal e 2º da Lei nº 9.096/1995 (lei dos partidos políticos) e, ainda, dos arts. 1º e 2º da Resolução nº 25.531/2018, do Tribunal Superior Eleitoral, que regulamenta o processo de criação e organização dos partidos. Esse entendimento igualmente se deixa revelar na decisão do plenário do STF no julgamento de improcedência da ADI 5.311/DF, ajuizada contra disposições da Lei nº 13.107/2015 que, por sua vez, vedou a contabilização de assinatura de eleitores filiados a outras legendas no cálculo do apoio exigido para o registro do estatuto de partido político (0,5% dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados). Viabilizar a criação de partidos políticos que, a despeito do propósito de habilitação à disputa eleitoral, promovam a corrosão da representação é pôr em xeque a democracia. Nesse sentido, o voto da ministra Carmen Lúcia ao tratar do controle qualitativo da criação de novos partidos, que conduziu o indeferimento do pedido cautelar naquela ação direta: “...a proliferação indiscriminada de partidos sem coerência ou respaldo social importa em risco institucional, podendo conduzir ao desalento democrático, perigoso precursor de regimes antidemocráticos. Daí a necessidade de, adstritos às exigências da representatividade constitucionalmente definida, restringirem-se ímpetos de deslegitimação do exercício do poder que, apesar de formalizado pela atuação dos partidos políticos, poderia transformar o sadio pluripartidarismo em caos político.” (STF. ADI 5.311 MC, rel. min. Cármen Lúcia, j. 30-9-2015, P, DJE de 4-2-2016). Assim como não está juridicamente protegida a propagação, em público, da defesa de “processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” ou a incitação “à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”, tipificadas na lei de segurança nacional; a organização de manifestações antidemocráticas que tenham por finalidade o fechamento ou extinção de instituições do Legislativo ou do Judiciário representa óbice constitucional e legal à concessão do registro para que o grupo partidário seja formalmente reconhecido e passe a disputar eleições. Não se pode atribuir a condição de jogador àquele que não reconhece como válidas as próprias regras do jogo. Enquanto a escalada autoritária avança ante a gravidade das ameaças ao livre funcionamento dos poderes, que reiteradamente tem marcado presença no discurso dos apoiadores de Jair Bolsonaro, e mediante a articulação de lideranças do partido na organização do ato contra a democracia tal qual o do último domingo, não se pode esperar a omissão da Justiça Eleitoral. Aprovar o registro de um partido político que promove à luz do dia a extinção da democracia seria como administrar veneno a quem urgentemente carece de remédio. *Douglas Zaidan é doutor em Direito, Estado e Constituição/UnB, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador e coordenador do Grupo de Pesquisa em Sociologia das Instituições Judiciais (UnB/UCSal) *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.