ETERNA GLÓRIA MARIA

Glória Maria contra o racismo: jornalista peitou ditador e foi a primeira a acionar Lei Afonso Arinos

Primeira jornalista negra a ter destaque na televisão brasileira faleceu aos 73 anos, vítima de um câncer; Relembre sua espetacular trajetória que define, por si, a luta antirracista de muitos brasileiros

Glória Maria (1949-2023).Glória Maria contra o racismo: jornalista peitou ditador e foi a primeira a acionar Lei Afonso ArinosCréditos: Divulgação/TV Globo
Escrito en DIREITOS el

Glória Maria, a icônica e pioneira jornalista negra a conquistar destaque na televisão brasileira, infelizmente nos deixou nesta quinta-feira (2), aos 73 anos, vítima de câncer. Ela estava internada desde o último dia 4 de janeiro, quase um mês após ser diagnosticada com novas metástases cerebrais, o que a afastou das atividades da TV Globo no último mês de dezembro. Na emissora, os planos eram de que Glória se recuperasse e voltasse para o programa Globo Repórter em 2023.

A jornalista passou os últimos anos lutando contra o câncer. Primeiro, em 2019, foi diagnosticada com um câncer no pulmão. O tratamento surtiu efeito com imunoterapia e Glória curou-se. "Sofreu metástase no cérebro, tratada em cirurgia, também com êxito inicialmente. Em meados do ano passado, Glória Maria começou uma nova fase do tratamento para combater novas metástases cerebrais que, infelizmente, deixou de fazer efeito nos últimos dias", informou comunicado da TV Globo.

Mas não foi a luta contra o câncer a principal batalha da sua vida. Mesmo não sendo conhecida como uma ativista ou militante antirracista, nos moldes que se pensa o termo na atualidade, sua própria existência pioneira, como mulher negra, ainda jovem pleiteando uma posição de destaque e mais tarde consolidando essa posição, Glória desafiou automaticamente o racismo presente na sociedade brasileira há séculos e no próprio mercado de trabalho. Como agravante, numa profissão em que invariavelmente poderia torná-la uma pessoa pública, como aconteceu. E venceu, assim como Pelé – outro ídolo que recentemente partiu.

Não é por acaso que tantas personalidades a reverenciam e homenageiam, no momento do luto, como alguém que mostrou que “sim, é possível” vencer o racismo e ser o que se sonha. E os casos não se limitam ao jornalismo. O rapper Emicida por exemplo atribuiu sua própria existência como artista à existência de Glória Maria como jornalista: “Foi referência da possibilidade preta na TV”, declarou.

O próprio Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), demonstrou tristeza pelo falecimento e relembrou a trajetória de Glória como “repórter em momentos marcantes do Brasil e do mundo. Entrevistou grandes nomes e deixou sua marca na memória dos brasileiros e brasileiras”.

Além de Lula, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, o ator Lázaro Ramos e as atrizes Zezé Motta e Taís Araújo também lamentaram a morte de Glória. Zezé Motta, inclusive, resumiu com maestria a trajetória da jornalista.

“Glória era atrevida, teve vários problemas com militares. Enfrentou dificuldades por ser mulher, por ser negra e por ter vindo de uma família pobre. Mas com muito trabalho, mostrou muita dignidade e conseguiu respeito, sua história sempre foi de superação. Foi desbravadora. Foi a primeira mulher e primeira negra a apresentar um jornal na televisão brasileira”, resumiu.

E foi esse atrevimento tão bem descrito por Zezé Motta o que lhe possibilitou ter a força mental suficiente para a jornalista encarar problemas enormes, como o racismo, conforme a própria Glória Maria relatou durante entrevista concedida ao programa Roda Vida, da TV Cultura, em março do ano passado. Na ocasião contou a respeito de diversos episódios nos quais sofreu ataques racistas e em como se defendeu para, em seguida, vencer os ataques.

Um desses ataques foi proporcionado por ninguém mais, ninguém menos, do que o ditador João Figueiredo – o último dos generais que assaltaram o poder em 1964. O ditador disse para pessoas próximas que não queria a “neguinha da Globo” perto dele. “Tive uma experiência horrível com o Figueiredo, mas não tinha preocupação de que pudesse me prender. Tinha talvez uma ingenuidade nesse sentido. Sempre carreguei essa visão de que tudo podia dentro do trabalho que eu fazia. Por isso, ia em frente”, declarou ao Roda Viva.

Outro ataque que a própria jornalista destacou em entrevista para a Globo, ocorreu ainda na década de 1970, no Rio de Janeiro. Glória Maria foi impedida pelo gerente de um hotel de entrar no estabelecimento, por ser negra. “Ele disse que negro não podia entrar, chamei a polícia e levei esse gerente para os tribunais. Estrangeiro, foi expulso do Brasil, mas se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. O racismo, para muita gente, não vale nada”, contou. Nesse episódio, a jornalista ficou registrada como a primeira pessoa a usar a Lei Afonso Arinos, de 1951, que punia racismo como contravenção, não como crime como ocorre atualmente.

Em seguida, Glória fez uma reflexão sobre o tema. Afirmou que nem a fama e nem o dinheiro podem proteger um negro, ou negra, do racismo. “Se você é mulher e preta é pior ainda, porque sabemos que somos mais abandonadas e discriminadas. É preciso aprender a se blindar da dor. Se você for esperar uma blindagem universal, está perdida (…) Hoje nada me faz sofrer porque aprendi a me blindar e ensino isso para as minhas filhas”, concluiu.

Relembre a seguir alguns momentos marcantes da carreira de Glória Maria.

O dia que Glória Maria fumou a ‘ganja sagrada’ na Jamaica

Glória Maria participava como personagem em muitas de suas coberturas. Uma delas, que fez muito sucesso, foi quando fumou a “ganja (maconha) sagrada” na Jamaica. Ela relembrou o fato durante entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, da TV Cultura, e contou que foi na comunidade rastafari mais radical do país.

"Era a mais radical de todas. Três meses de negociação para entrar. Um dos regulamentos era fazer uma oração no momento da entrada. Assinamos um monte de papel, mas deu certo. Na saída, tinha outra oração. Só que não lemos tudo e era necessário fumar a ganja sagrada para sair. Pensei: ‘ganja sagrada vamos fumar’”, explicou. Gloria disse ainda que o líder da comunidade queria vê-la “cair dura” por não aguentar o fumo. Mas ela acabou com os planos dele. “Puxei duas vezes e aguentei", revelou.

O dia em que Glória Maria entrevistou Michael Jackson

Entre tantos momentos históricos de sua carreira, também foi lembrado nesta data quando Gloria Maria conseguiu entrevistar o cantor Michael Jackson que, em 1996 veio ao Brasil para o gravar o clipe da música "They don't care about us", no morro da Dona Marta, no Rio de janeiro.

Na conversa, que durou menos de um minuto, Glória pediu para que o astro da música pop para os brasileiros. "I love you, Brazil", respondeu Michael. Relembre abaixo o momento histórico.

Encontro inusitado com Raul Seixas em uma “ressaca” do mar

Em 1977, a repórter da Globo conseguiu um "personagem" surreal para a reportagem que fazia sobre a ressaca no mar do Rio de Janeiro - uma pauta morna, que geralmente não tem muito destaque nos telejornais. Na cobertura do fenômeno que causou prejuízos a moradores e à administração municipal, Gloria Maria teve um encontro inusitado com o cantor e compositor Raul Seixas, que teve o cara revirado pela ressaca do mar.

Na entrevista, Gloria perguntou a Raul Seixas o que ele achava sobre a ressaca no mar e deu brecha para o "maluco beleza" dar mais uma de suas respostas viajantes. "É um coisa profética, já está na profecia. Inclusive acho que todo mundo sabe que o Rio de Janeiro está abaixo do nível do mar. Isso é um primeiro vômito, um anúncio: 'ah lá, cumpadi, dá terror? Então vamos lá. As portas dos edifícios estão fechadas e quem dançou fui eu, porque meu carro foi jogado pra cima e arrebentou todo para segurar a barra de onda", disse Raul.

"A onda tá certa, a onda tá certa. O que está errado é esse negócio de aterro. Tomara que arrebente isso tudo", emendou o cantor e compositor baiano, que morreu no dia 21 de agosto de 1989 em São Paulo vítima de uma parada cardíaca.

A jornalista

O nome completo de Gloria Maria é Glória Maria Matta da Silva. Ela era filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta. Glória adotou duas filhas: Laura e Maria. Fazia aniversário no dia 15 de agosto e era do signo de leão.

Glória trabalhou como telefonista na Embratel na época em que fazia faculdade de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Formada em jornalismo pela PUC-RJ, Gloria Maria passou a trabalhar na Globo em 1970 e logo se destacou pelo seu estilo de reportagens em campo. Passou pelo RJTV, Jornal Hoje e Fantástico, onde se consagrou.

A jornalista revelou certa vez, em uma entrevista, que havia perdido a conta exata, mas que esteve em "mais ou menos" 156 países. De acordo com ela, alguns dos lugares que visitou nem existem mais, como os países da ex-Iugoslávia e algumas cidades da Síria. Ela tinha muitos passaportes, mas não sabe quantos: "eu perdi a conta, devo ter uns 15 passaportes", disse no programa da Tatá Werneck.

Sobre a quantidade de línguas que falava, ela fez uma revelação surpreendente: “Só falo inglês e francês. Arranho no espanhol e no italiano. Qual o problema? Eu sou brasileira, então sempre consigo me comunicar com todo mundo, seja na Sérvia, seja no Oriente Médio. No final, a língua que todo mundo entende é o idioma da alma.”

*Com colaboração de Julinho Bittencourt, Marcelo Hailer e Plínio Teodoro

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar