ENTREVISTA

"Política sendo feita à base de sangue e corpos", diz ex-PM sobre massacre de Castro no Rio

Em entrevista à Fórum, Adilson Paes de Souza, pesquisador sobre letalidade policial, debate necropolítica e caráter eugênico de ações policiais

Polícia Militar do Rio de Janeiro.Créditos: MAURO PIMENTEL / AFP
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A operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro escancarou, mais uma vez, o objetivo desse tipo de ação nas comunidades, que não é o combate ao crime organizado, mas a perpetuação de uma necropolítica. A avaliação é reforçada pelo ex-tenente coronel da Polícia Militar de São Paulo aposentado, Adilson Paes de Souza, que hoje se dedica a entender a alta letalidade policial e o caráter violento das forças de segurança. 

"[Essa operação] diz sobre uma necropolítica. E falo isso sem o risco de cair num clichê. Nós temos um Estado que determina quem pode viver e quem deve morrer como forma de se afirmar como Estado num determinado território", afirmou Souza. 

Para o ex-PM, a ação de Castro demonstrou que a realidade é que há uma "política sendo feita à base de sangue e corpos". "Não é à toa que a extrema direita se uniu à operação. Então, eles estão usando corpos e sangue para um populismo nefasto", denunciou Souza. 

O ex-PM afirmou que esse cenário se comprova quando fica evidente que os agentes policiais estavam confiantes da impunidade. "Eles estavam muito bem seguros, eles estavam com cobertura suficiente para fazer o que fizeram, eles têm a garantia da impunidade. O que fizeram com testemunhas oculares, com requintes de crueldade e corpos dilacerados, é a certeza da impunidade", disse. "Temos explicitamente a banalidade do mal, o ser humano como descartável", acrescentou. 

Nesse sentido, Souza destacou que a ação do governador Cláudio Castro (PL) não pode ser considerada uma operação, mas um massacre, pois uma operação pressupõe algo organizado com o objetivo de obter um resultado dentro de certas normas. "Qualquer operação na Polícia Militar é regida por regras, normas internas e determinações do poder Judiciário. Nada disso foi obedecido nessa ação, por isso que eu não falo 'operação'. Eu falo em massacre e extermínio", declarou o ex-PM. 

Souza ainda acrescentou, portanto, que esse tipo de ação continua sendo realizada, apesar de não ser eficiente em relação ao combate ao crime, justamente por seu caráter "eugênico". 

"Existe uma ação de limpeza social e racial. Você não vê esse tipo de operação nos bairros mais abastados da cidade. Lá as garantias constitucionais são observadas. O risco de atingir vítimas é considerado. Em outros lugares, as pessoas não são consideradas pessoas", afirmou Souza se referindo às periferias e à população mais pobre que convive diariamente com violações de direitos. 

"Nós podemos aplicar o conceito do 'assujeitamento'. Elas [pessoas das periferias] não são consideradas pessoas. Tanto é que o governador do Rio de Janeiro ontem falou que para ele só havia quatro vítimas, ou seja, quatro pessoas foram consideradas vítimas porque quatro pessoas foram consideradas pessoas. Quem? Os policiais. Os demais, nem pessoas foram.  Por isso que não são vítimas, são objetos descartáveis. É essa a interpretação que nós temos que dar", analisou Souza. 

Operações violentas e corrosão do Estado Democrático de Direito

Em relação à eficiência da ação contra o crime organizado, Souza reforçou que "nada" é resolvido com esse tipo de operação. 

"Quem, porventura, era membro do Comando Vermelho e foi morto será substituído prontamente. Em mais ou menos uma semana, tudo volta ao normal. E essa tem sido a tônica no Rio de Janeiro e em outras cidades", disse. 

O ex-PM ainda destacou que outro resultado negativo desse tipo de operação é o descrédito da população local com o estado. "Vai criando um vácuo muito perigoso que pode permitir a expansão de outras organizações. O descrédito no estado é muito perigoso", apontou Souza. 

"Não produz resultado prático, produz mais desagregação social e produz cada vez mais a corrosão do Estado Democrático de Direito que, em termos de Segurança Pública, não existe no nosso Brasil. Então, no geral, vai cada vez mais corroendo por dentro a nossa democracia", avaliou. 

Desmilitarização da Polícia Militar 

Souza também falou sobre a desmilitarização da Polícia Militar como um dos caminhos para acabar com esses massacres. Conceito muitas vezes distorcido pela extrema direita, a desmilitarização serve para que o policial não se veja em um "campo de batalha onde o oponente, qualquer que seja a pessoa, é tido como inimigo que merece ser morto", de acordo com o ex-PM. 

"Nós temos uma polícia cuja estrutura foi criada na ditadura em 1969. Essa estrutura não mudou com a Constituição de 88. Então, nós temos uma democracia, um Estado Democrático de Direito, que foi instituído pela Constituição de 88, convivendo com uma estrutura policial da ditadura. Não dá match, não bate", explicou Souza.

"Então, desmilitarizar é refazer essa estrutura policial no sentido de que ela coaduna com os princípios consagrados pelo Estado Democrático de Direito. As polícias militares, hoje, têm sua atuação pautada pela doutrina de segurança nacional que embasou o golpe e toda a ditadura", complementou. 

Souza ainda chamou atenção de que a militarização não está só na polícia, mas também nas instâncias de outros poderes do Estado, influenciado pela doutrina da "eliminação do inimigo". "Nós temos toda uma estrutura que atua para garantir a impunidade do agente na ponta da linha". 

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