Resistência: força que se opõe à outra, que não cede à outra

Após cinco meses dos assassinatos de Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes, ainda não foram anunciados autor e mandante dos crimes bárbaros. Mesmo com fortes evidências de crime político, com envolvimento de milícias do Rio de Janeiro, a Delegacia de Homicídios da Polícia Civil não conseguiu fechar o caso. Monica Benicio, arquiteta, militante pelos direitos humanos e companheira de Marielle por 14 anos, destaca a palavra “resistência” para revelar quais os seus sentimentos mais profundos durante esse tempo sem a companheira. Para marcar a data, Monica escreveu um artigo especialmente para a Fórum.

Foto: Arquivo Pessoal
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A palavra resistência tem marcado os últimos cinco meses tanto no resgate do que foi a atuação de Marielle, quanto no que hoje sua família e diferentes movimentos sociais fazem para exigir resposta para sua execução. Ela marca também a minha existência nos últimos cento e cinquenta e três dias. E por que a estamos usando repetidamente? Ao refletir sobre isso busquei identificar o que tem nos movido, me movido a seguir: brio, força, persistência, determinação, firmeza, obstinação, perseverança, teimosia. Essas palavras são sinônimos de resistência e definem estes últimos meses.

Estamos determinados e obstinados a não permitirmos que a execução de Marielle se torne um “caso”. O assassinato de uma vereadora em pleno exercício de seu mandato não pode ser negligenciado. Ainda não temos respostas sobre quem a matou, quem são os responsáveis e quais foram as motivações.  E enquanto isso não for solucionado estaremos firmes denunciando cotidianamente, cobrando e tomando todas as medidas cabíveis. Essa é parte de nossa resistência. Uma parte fundamental, a qual tenho me dedicado todos os dias, mas que não é a única.

Resistência também significa força. E nestes mais de cento e cinquenta dias eu tive que buscar dentro de mim uma força que nem sabia que possuía. Força para coisas simples como levantar da cama e para comer. Força para falar em público, para dar visibilidade à luta de Marielle. Força para manter a racionalidade e não me desumanizar. Força para voltar a sorrir e me permitir pensar novamente em futuro. Alguns dias são menos difíceis, outros se tornam como o primeiro dia em que ela não estava mais aqui. Mas em todos eles conto com uma enorme rede de amigos e amigas que seguram a minha mão, que me empurram, que literalmente me colocam de pé.

E se tem sido o período mais doloroso e sofrido da minha vida, também tem sido o de maior aprendizado. O contato com cada uma dessas pessoas e a energia que encontro junto aos movimentos têm dado sentido à toda luta que travamos. Passar por esta dor, que é a de perder meu grande amor, foi também perceber a generosidade daqueles e daquelas que defendem e atuam por um outro projeto de sociedade e de vida. Isso nos diferencia. Somos humanos, sentimos a dor do outro e nos doamos. Isso me dá a certeza de estar do lado certo, de que Marielle estava do lado certo.

Marielle enfrentou dias muito difíceis no exercício do seu mandato como vereadora, pois ser mulher negra, lésbica, feminista e de esquerda, em uma casa parlamentar repleta de setores que representam todo o atraso político deste país, foi todo o tempo um ato de persistência. A crença em uma vida mais digna e justa, em uma cidade de encontros e de afeto, onde o amor, nas suas diferentes expressões, sempre pudesse acontecer e prevalecer, eram parte importante da vida da minha companheira. E hoje consigo ter dimensão do que ela e as lutas que representava significavam. Consigo sentir nos abraços que recebo que não há outra forma de existirmos nessa sociedade, sendo favelados, negros, mulheres e lgbt, se não for lutando. Então, por ela e sua memória, mas também por todos nós que nos encontramos na grande sensibilidade diante dos problemas do mundo, face à injustiça, seguirei lutando.

Não nos conformamos em viver em um mundo com racismo ou machismo. Não nos conformamos que tentem nos impor modelos de família. Mas, principalmente, não nos conformamos jamais que nos silenciem e que tentem tirar nosso direito de lutar. Se a execução de Marielle foi uma tentativa de nos calar, de silenciar nosso projeto de sociedade, lembramos todos os dias a seus responsáveis que eles falharam. Porque do campo que fazemos parte, sofremos, sentimos e carregamos nossa dor ao longo da vida, como farei sempre, mas isso não nos tira da batalha. Isso nos fortalece, tanto para afirmarmos que não terão um dia de descanso até que seja respondido quem matou Marielle e por que, quanto para seguirmos defendendo nosso projeto de sociedade.

Nos últimos cinco meses eu vi por diversos momentos minha fé abalada, me vi desacreditada e sem conseguir pensar no amanhã. E eu contei e conto com pessoas que se importam com os outros, que me mostraram que não estou sozinha, que temos um projeto e que ele é coletivo. E sou profundamente grata, porque, infelizmente, isso é muito raro no mundo em que vivemos hoje. Vivemos tempos onde mais do que nunca somos ensinados/as a sermos indiferentes, individualistas e a invisibilizarmos o outro e seus sentimentos. E por mais que ainda seja difícil para mim, que ainda me sinta perdida ou sozinha, minha resistência tem se dado pela existência deste projeto.

Encerro enviando meu amor e respeito a todos que ousam fazer diferente, que ousam sonhar. Nossos sonhos nos levarão a um mundo onde todos podem viver e amar de forma igualitária, onde ninguém tenha medo de dizer como se sente ou dizer o que é. Que ninguém mais precise perder seus filhos ou seus amores. Porque como já disseram antes: eu também odeio os indiferentes e acredito que “viver significa tomar partido”. Vamos juntos e juntas, tomando partido!