O caso Cancellier: A quem interessa destruir reputações?

O processo que levou o ex-reitor da UFSC ao suicídio escancara uma prática cada vez mais utilizada por instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público: a execração pública sem o direito de defesa.

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O processo que levou o ex-reitor da UFSC ao suicídio escancara uma prática cada vez mais utilizada por instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público: a execração pública sem o direito de defesa. Por Lucas Vasques O suicídio do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luis Carlos Cancellier de Olivo, no dia 2 de outubro, em Florianópolis, causou comoção nacional, especialmente pelas razões que o levaram a cometer ato tão radical e definitivo. No entanto, além disso, deve servir para uma reflexão importante: este foi um exemplo cabal de como vivemos tempos sombrios no Brasil. A destruição de reputações, por intermédio de abuso de autoridade e acusações de corrupção, se transformou em um excelente negócio. O processo que levou Cancellier à morte escancara uma prática cada vez mais utilizada por instituições que deveriam ser portos seguros para os cidadãos em situações-limite: a execração pública sem o direito de defesa. A Polícia Federal e o Ministério Público se arvoram de arautos da moralidade e da justiça e, com isso, conquistam notoriedade junto à opinião pública desavisada. A mídia tradicional, por sua vez, ganha de presente informações, cuja veiculação interessa aos acusadores, sem a necessidade de qualquer investimento em reportagens e investigações. Isso tudo aumenta a audiência, pois, historicamente, o público médio se sente atraído por execuções públicas. Contudo, o saldo disso tudo é uma trágica realidade, exatamente como a que vitimou Cancellier. Cau, como era conhecido na intimidade, chegou ao ponto mais alto de sua história acadêmica em maio de 2016, quando se tornou reitor da UFSC, coroando uma bem-sucedida trajetória de trabalho e luta. No entanto, em pouco mais de um ano, viu tudo ruir. No dia 14 de setembro, ele foi preso, despido, algemado e acabou se transformando em ícone de um esquema de corrupção milionário dentro da universidade. Um grande escândalo, amplamente noticiado pelos principais jornais do país. Sua foto com o indefectível uniforme laranja de presidiário circulou pelas redes sociais. Enfim, a morte da reputação de Cancellier já estava decretada. Ele havia sido preso temporariamente durante ação da Operação Ouvidos Moucos da Polícia Federal, que investiga desvio de verba no programa de Educação a Distância. Cancellier e outros cinco funcionários da UFSC ficaram detidos por um dia. A suspeita era de que o reitor havia interferido nas investigações realizadas pela corregedoria interna da universidade. A Polícia Federal informou que ele havia sido preso sob acusação de obstruir a investigação e que ele não estava implicado no suposto desvio de milhões de reais. Este paradoxo trouxe consequências definitivas, pois o estrago em sua imagem já era irreversível, pelo menos para ele próprio. A reitoria havia amanhecido pichada com a frase “ladrões devolvam os 80 milhões”. Cancellier foi afastado do seu cargo e proibido de pisar na universidade que frequentava havia quatro décadas, localizada em frente ao apartamento onde morava. Realmente ele nunca mais voltou a entrar na UFSC, pois não suportou a humilhação e, aos 59 anos, se jogou do quinto andar de um shopping na capital catarinense. Desabafo Logo após o fato, um de seus irmãos, Acioli Antônio Cancellier de Olivo soltou um desabafo de revolta em sua rede social. Dias depois, em entrevista à Fórum, disse: “São vários fatos que determinaram o seu gesto fatal. Primeiro, ser detido e interrogado durante seis horas por policiais sobre a legalidade de um ato jurídico. É assimétrico discutir atos jurídicos com carcereiros. Em seguida, alegando falta de acomodações adequadas na sede da PF, foi encaminhado para um presídio comum, já como prisioneiro, com todas as 'regalias', da nudez vexatória, passando pela revista íntima humilhante, finalizada pelo uso do traje clássico. A suspensão de seu mandato de reitor foi outro golpe que o dilacerou; acrescido de requintes de crueldade, como a proibição de entrar na UFSC e se comunicar com integrantes da universidade. Como esses fatos devem ter doído, haja vista que a UFSC era tudo para ele, a sua vida, seu orgulho”. [caption id="attachment_116265" align="aligncenter" width="417"] Acioli Antônio Cancellier de Olivo: "A suspensão de seu mandato de reitor foi outro golpe que o dilacerou; acrescido de requintes de crueldade, como a proibição de entrar na UFSC e se comunicar com integrantes da universidade"[/caption] Coragem e revolta Para a advogada de defesa de Cancellier, Nívea Dondoerfer Cademartori, o ato extremo de suicídio representou um misto de coragem e revolta. “Primeiramente, ao contrário do que vem sendo noticiado, os supostos desvios apontados são de R$ 300 mil e não de R$ 80 milhões, valor total repassado ao programa de Ensino a Distância. A prisão foi arbitrária e totalmente desnecessária. Bastaria que a Policia Federal intimasse o reitor para prestar esclarecimentos, o que de pronto seria atendido, mas jamais a prisão. Atualmente, há uma verdadeira banalização da aplicação das prisões temporárias (no caso do reitor) e preventivas, o que causa danos nefastos a todos que possam vir a ser suspeitos de cometimento de condutas ilícitas, mesmo sendo inocentes. Assim, ao se tratar da pessoa de Luis Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, a prisão foi devastadora, pois ao comprometer sua imagem, gerou dano irreparável a todo um curriculum impecável construído com muito sacrifício e comprometimento ao longo de anos”, ressalta. [caption id="attachment_116266" align="aligncenter" width="300"] Nívea Dondoerfer Cademartori: "Há uma verdadeira banalização da aplicação das prisões temporárias (no caso do reitor) e preventivas"[/caption] Fascismo Amigo de infância de Cancellier, Lédio Rosa de Andrade, desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, não se conformou com os rumos que a investigação tomou e desabafou em um emocionado e emocionante discurso, durante a cerimônia em homenagem a Cancellier, nas dependências da universidade. Em entrevista exclusiva à Fórum, ele não mediu palavras para definir sua revolta: “Hoje, tenho mais medo dos fascistas do que no tempo da ditadura. Mas esse medo não me paralisa, ao contrário, me incentiva a atuar, a denunciar, a conclamar pela união dos democratas para que parem o avanço da barbárie. De fato, eles estão de volta. Nós democratas já os vencemos e vamos vencê-los de novo”. [caption id="attachment_116267" align="aligncenter" width="438"] Lédio Rosa de Andrade: "Hoje, tenho mais medo dos fascistas do que no tempo da ditadura" [/caption] Angústia “Nossa maior angústia, ao longo dos vinte dias que durou o martírio dele, foi não termos podido vê-lo, abraçá-lo em solidariedade. Isso foi definitivo para consolidar o estado depressivo pelo qual ele passou até o limite de suas forças. Para quem, como ele, estudava e ensinava sobre justiça, promovia diálogos e defendia a tolerância, ser preso com requintes de crueldade e submetido às piores humilhações foi definitivo.” Este foi o testemunho de Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete da reitoria da UFSC e amigo pessoal de Cancellier. Moraes relembra que o comportamento do amigo foi mudando ao longo dos dias. “Vimo-nos pela última vez na quarta-feira (13-9), véspera da prisão. Ele estava motivado, disposto e despachamos várias questões importantes. Depois disso, sabíamos apenas por meio de poucos amigos que o viam que, a cada dia, ele estava mais abalado. Jamais imaginávamos que pudesse ocorrer o desfecho que ocorreu. Mas a atitude de colocar fim à vida foi um ato político, cujo sentido sabemos bem identificar”, reflete. Ele ressalta que Cancellier assumiu a reitoria da UFSC em 2016 e o programa de Ensino a Distância, pivô do imbróglio, foi criado em 2006, ou seja, dez anos antes. Portanto, se é que existiam irregularidades, o problema estaria fora do alcance da participação dele. “O próprio processo, até onde conseguimos ter acesso, já que nos foram institucionalmente negadas as informações completas, aponta que o período sob suspeição se refere a episódios ocorridos em 2011 e 2015. Não houve, em nenhum relatório recente da CGU, por exemplo, em auditorias regulares e frequentes, qualquer menção a fatos ocorridos a partir de maio de 2016, quando ele assumiu.” Surpresa Casada durante 15 anos com Cancellier, entre 1986 e 2001, Cristiana Vieira ficou muito surpresa com o que estava ocorrendo em relação às investigações que atingiram o ex-reitor da UFSC. “Não é pelo fato de ser um próximo e, mais que isso, pai do meu filho mais velho. Mas o Cau sempre esteve à frente das lutas populares, sempre foi um homem simples, nunca saiu da casa onde morávamos, mantinha há anos os mesmos hábitos, extremamente simples. Não sabia dirigir, não tinha carro. Não tinha vaidades e detestava viajar. Sempre viveu para o trabalho e para nosso filho (Mikhail Cancelier, professor de Direito na UFSC, que nasceu em Brasília, em 1987, quando ambos trabalhavam na Constituinte)”, revela Cristiana. Durante todo o processo, ela percebeu que algo estava errado. “Ele era um homem público, com residência fixa, reitor da universidade, sem antecedentes. Foi preso em casa, levado para a PF e, em seguida, transferido para a Penitenciária do Estado onde, algemado, sofreu revista íntima e foi vestido com o uniforme laranja dos presos. Tudo isso em menos de 24 horas, sem que soubesse o motivo. Ele e mais cinco professores. Ficou incomunicável. Toda a ação baseada em denúncias não apuradas sobre o Programa de Ensino a Distância na UFSC. Pelo que conhecia do Cau, sabia que, naquele dia, a vida dele estava ameaçada. Era demais para o que podia suportar. Ele conversava com poucas pessoas, nunca gostou de incomodar ninguém. Eu continuei sempre muito próxima dele, construímos uma amizade sólida com os anos, era meu irmão. Ele não tinha estrutura para suportar tanta arbitrariedade. Entrou em depressão e num sofrimento profundo. Sabia que sua imagem estava indelevelmente manchada e que tudo isso era apenas o começo. Quando foi solto, estava impedido de voltar à universidade. Ele começou a morrer”, contou Cristiana, em entrevista à Fórum. Solidariedade e alerta O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se sensibilizou com o que ocorreu e divulgou nota em solidariedade à família do reitor. Para Lula, ele foi vítima das “manchetes sensacionalistas” e da “sede da destruição de reputações”. “É um momento muito triste para o país, a perda de um professor dedicado à causa do conhecimento e da universidade pública, que foi exposto sem nenhum motivo justificável, apenas para a sanha das manchetes sensacionalistas e a sede da destruição de reputações”. Já o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, acredita que “o falecimento de Cancellier serve de alerta sobre as consequências de eventual abuso de poder por parte das autoridades”. Ele defende que o CNJ, o CNMP e o Ministério da Justiça atuem no caso. Mendes ainda afirmou, em seu Twitter: “Não estou antecipando responsabilização, mas o caso demonstra que, algumas vezes, sanções vexatórias são impostas sem investigações concluídas. O sistema de justiça precisa de extremo cuidado para que excessos não sejam cometidos. Estamos lidando com a vida e a dignidade das pessoas”. [caption id="attachment_116268" align="aligncenter" width="500"] Lula; "Cancellier foi exposto sem nenhum motivo justificável, apenas para a sanha das manchetes sensacionalistas e a sede da destruição de reputações"[/caption] Revolta O procurador-geral do estado de Santa Catarina, João dos Passos Martins Neto, também não se conteve e divulgou uma nota de pesar pela morte de Cau: “A tragédia de sua partida ocorre sob condições revoltantes. As informações disponíveis indicam que Cancellier padeceu sob o abuso de autoridade, seja em relação ao decreto de prisão temporária contra si expedido, seja em relação à imposição de afastamento do exercício do mandato, causas eficientes do dano psicológico que o levaram a tirar a própria vida”, escreveu. Prisões espetaculares Na avaliação de Paulo Marcondes Brincas, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB-SC), “prisões espetaculares, com ampla cobertura da mídia, que muitas vezes acabam em absolvição ou em casos sem denúncias, estão distorcendo o papel real da Polícia Federal e do Ministério Público. O que seu viu foi muito grave”, resume. [caption id="attachment_116269" align="aligncenter" width="515"] Paulo Marcondes Brincas: "Estão distorcendo o papel real da Polícia Federal e do Ministério Público"[/caption] Legado A ex-esposa de Cancellier, Cristiana Vieira, uma semana após a tragédia, escreveu um texto que serve de mensagem para traduzir o legado deixado pelo reitor Cancellier. “Muito já se falou sobre Luis Carlos Cancellier, o Cau, durante toda sua vida e, sobretudo, durante essa última semana sombria e cheia de saudade. Mas não é difícil falar do Cau. No espaço familiar, como no espaço profissional, deixou exemplos, ensinamentos e lições que nos permitiriam falar dias sobre ele. Nasceu predestinado, num 13 de maio, 70 anos depois da assinatura de um dos primeiros atos legais no Brasil que vislumbrava os ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. E foi por esses mesmos ideais que o Cau lutou, viveu e deu a sua vida. Não era um homem de confronto; preferia o acordo. Não era um homem de vaidade; escolheu o exemplo dos humildes. Não era um homem de cobiça; pautou sua vida na trilha da simplicidade e do desapego. Não era homem de julgamentos; preferia oferecer a mão amiga e acolher. E não era homem de tentativas; era um homem de atitudes. Acreditava que a vida era construída sobre o alicerce firme dos atos, sobre a verdade e o respeito. Então, hoje, mesmo dentro de tanta dor, ele ainda nos permite olhar para o céu cinzento e nefasto que encobre os desmandos e os abusos, vislumbrando sempre o horizonte escondido, mas iluminado, da Justiça e da Liberdade. E nós que ficamos só podemos agradecer ao Cau, todos os dias, com cada uma de nossas pequenas vozes que, juntas, podem ecoar como um brado por tempos mais justos. Obrigado Cau, pai, padrinho, irmão, filho, tio, cunhado, AMIGO. Nós acreditamos no teu exemplo e o seguiremos pela vida. Obrigado Cau, professor, jornalista, advogado, reitor, AMIGO. Nós nos fortalecemos no teu exemplo. Obrigado Cau. Fica em paz. Nada terá sido em vão”. Fotos: Divulgação UFSC, Reprodução e Arquivo Pessoal