Um povo sem memória não é um povo livre – 129 anos de abolição inacabada

Ato contra o racismo no Rio de Janeiro (Foto Tania Rêgo/Agência Brasil)
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Não podemos perder a memória do dia 13 de maio, compreender esse fato histórico, os seus limites, suas consequências, sua incapacidade de integrar o povo negro, o projeto de manutenção dos privilégios da elite em detrimento da completa exclusão dos ex-escravizados Por Joselicio Junior* É preciso lembrar o passado para entender o presente e construir o futuro. Não reconhecer que o presente é consequência direta das ações do passado, e o que fazemos hoje refletirá no futuro, é o caminho mais fácil para minimizar os impactos do escravismo no Brasil, que durou quase 400 anos, e refletir como 129 anos após a assinatura da lei área a comunidade negra permanece numa condição de extrema desvantagem. Do ponto de vista histórico, é importante destacar que a concretização da abolição foi resultado de um conjunto de disputas de projetos. De um lado havia uma pressão internacional para adesão ao capitalismo moderno e ao trabalho assalariado. Havia uma pressão interna de setores da aristocracia que defendiam o abolicionismo, mas, sobretudo, também havia uma pressão popular organizada através de revoltas populares, fugas em massa, formação de quilombos. Ou seja, havia um projeto da elite, mas também havia um projeto popular. Portanto, a abolição está muito longe de ser uma bondade, mas fruto de uma luta histórica. Se de um lado a abolição da escravatura foi uma vitória, muito comemorada pela comunidade negra na época, o dia seguinte trouxe um abismo que se arrasta até os dias de hoje. Abolir a escravidão sem oferecer nenhuma contrapartida, nenhuma reparação para aquela população que foi historicamente superexplorada, provocou um duro processo de exclusão. Como sentimos esse processo na atualidade Dados recentes do IBGE mostraram que a população negra é a mais atingida com o desemprego, com uma taxa de 14,4%, enquanto para a população branca esse índice cai para 9,5%. Na população com forte vulnerabilidade social e que recebe Bolsa-Família, a população negra representa mais de 70%. Do ponto de vista da escolaridade, da renda, em todos os índices econômicos e sociais temos o homem branco no topo, seguido da mulher branca, homem negro e, na base da pirâmide, a mulher negra. Durante os governos Lula e Dilma obtivemos alguns avanços, como a criação da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas da Igualdade Racial), a lei 10.639, que instituiu na Lei de Diretrizes de Base da Educação o ensino da Cultura e História Africana e Afro-Brasileira, o Estatuto da Igualdade Racial, política de cotas nas universidades federais e nos concursos públicos. Porém, neste mesmo período, vimos explodir os números de violência, que atingiu em cheio a juventude negra. Estamos entre os países que mais matam, em torno de 60 mil por ano, sendo que na sua maioria homens, jovens entre 15 e 29 anos e negros. Somos a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil pessoas, sua ampla maioria formada por negros, sendo que 40% são presos provisórios, ou seja, que não foram julgados. Não há como desassociar esse processo do projeto desenvolvimentista de expansão do capitalismo pelos centros urbanos com grandes obras, grandes eventos como Copa e Olimpíadas, e também a chamada guerra às drogas, que impôs aos espaços urbanos um conjunto de conflitos que refletiu drasticamente sobre a população mais vulnerável, consequentemente a comunidade negra. No último dia 12 de maio completou um ano de instalação do governo ilegítimo de Temer, que de um lado tinha como objetivo estabilizar os conflitos no meio político tradicional, mas que também fez uma aliança com a elite nacional, que desejava impor um conjunto de mudanças no mundo econômico e do trabalho em nosso país. Neste sentido, a principal tarefa do governo golpista são as reformas que retiram direitos trabalhistas e que dificulta a possibilidade de aposentadoria para os mais pobres, em detrimento de não mexer nos lucros de bancos e também de abrir mão de arrecadações de grandes empresas sonegadoras de impostos. Essa lógica, que é histórica em nosso país, de manter os privilégios do 1% mais rico em detrimento do estrangulamento dos mais pobres, com uma falsa ideia de modernização, nos fará retroceder quase um século e não é necessário repetir quem serão os mais atingidos. O momento em que vivemos nos traz um conjunto de desafios. Temos a tarefa de desconstruir os valores liberais encabeçados por novas lideranças negras que tentam deslegitimar a nossa construção histórica de resistência, destruindo nossos símbolos, nossa memória, e que apontam saídas individuais para problemas que são estruturais. Também precisamos transcender a dimensão da construção de identidade para uma ação coletiva e política, para barrar os retrocessos e pensar saídas, pensar projetos. Não podemos perder a memória do dia 13 de maio, compreender esse fato histórico, os seus limites, suas consequências, sua incapacidade de integrar o povo negro, o projeto de manutenção dos privilégios da elite em detrimento da completa exclusão dos ex-escravizados. Esses são elementos que marcaram os últimos 129 anos, sem contar as diversas estratégias de sobrevivência, de organização social e luta desse povo que sempre batalhou por dias melhores e esses elementos devem ser considerados em um projeto de nação. É preciso lembrar o passado, para entender o presente e construir o futuro. * Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é jornalista, presidente estadual do PSOL-SP e militante do Círculo Palmarino, entidade do movimento negro.

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