"Voltamos a ter presos políticos", diz Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos

“Está surgindo uma seleção de perseguição. Um sério sintoma totalitário. O inimigo já não é o estereótipo de adolescente de bairro precário, do ‘favelado’, que vive na miséria. O inimigo não é só esse. Agora começa a ser inimigo o opositor político."

(Foto: Divulgação/ Instituto Novos Paradigmas)
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Uma das maiores referências da área jurídica, Eugenio Raúl Zaffaroni esteve em Porto Alegre na última semana para participar como conferencista do colóquio sobre a democracia e a midiatização do processo judicial, promovido pelo Instituto Novos Paradigmas (INP), que tem como presidente de seu conselho o ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Zaffaroni, ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e, desde 2015, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, chamou a atenção para a volta de presos políticos na democracia. E destacou a realidade de exclusão social presente na América Latina e reforçada pela mídia comercial e monopolista. Sobre o Brasil, o jurista se disse preocupado com o sistema penal. Afirmou que há um processo de banalização das prisões, uma situação que reproduz a violência. Confira a seguir os principais trechos de sua conferência. Genocídio Segundo Zaffaroni, “sem controle jurídico, o poder punitivo vira genocídio. Nós exercemos a limitação jurídica, o controle jurídico do exercício do poder punitivo”.  Conforme ele explicou, todos os genocídios do século passado foram praticados por agentes executivos. “O que foi a Gestapo? O que foi a KGB? O que aconteceu com os genocídios armênios?”, questionou. Ele fez um paralelo às “nossas sociedades estratificadas latino-americanas”. “Somos treinados de jeito diferente segundo a nossa procedência social. Qual é a razão de todas as cadeias do mundo estarem cheias de pobres?” Hoje Zaffaroni alerta para o que chamou de um “grande perigo deste momento”. “Está surgindo uma seleção de perseguição. Um sério sintoma totalitário. O inimigo já não é o estereótipo de adolescente de bairro precário, do ‘favelado’, que vive na miséria. O inimigo não é só esse. Agora começa a ser inimigo o opositor político. E começa uma seleção de perseguição. No meu país isso é muito claro. Claríssimo. Temos grandes casos.” De acordo com Zaffaroni, essa perseguição por ordem do Direito com fins políticos, o que se chama de lawfare, ocorre com o apoio da mídia monopolista. “Perdeu-se todo o limite nisso. Tem uma seleção persecutória muito clara. Com alguns alvos, com algumas vítimas. Pela primeira vez, em 35 anos de democracia, voltamos a ter presos políticos.” Corporações e política “O que está acontecendo no mundo?”, questionou o jurista. Em sua opinião, a região primeiro sofreu os efeitos do colonialismo, depois de um neocolonialismo e agora sofre os impactos negativos da globalização. “A globalização é um capítulo superior do colonialismo. Nós viramos o colonialismo originário, depois tivemos o neocolonialismo, com as nossas repúblicas oligárquicas, depois tivemos o segundo capítulo do neocolonialismo com as nossas ditaduras de segurança nacional. E agora temos o tal do colonialismo financeiro. O método é o domínio financeiro.” De acordo com ele, as corporações transnacionais estão pressionando para ocupar o lugar da política. “Nos países centrais, os nossos países periféricos têm esse poder. Os países centrais são agora os países-sede das corporações. Nossos políticos, mesmo dos países centrais, são reféns das corporações.” Crise de 2008 Zaffaroni destacou o efeito do capitalismo financeiro, que ficou claro na crise de 2008. “O banco começa a dar dinheiro para comprar imóveis, os imóveis vão subindo de preço, mais dinheiro, sobe, sobe, sobe. E um dia acabou o dinheiro, acabou o crédito, cai os preços dos imóveis. Os bancos estão falindo. E falam para o Mr. Obama: ‘vamos falir. E se nós falirmos, vocês caem conosco’.  E isso contribui para os Estados Unidos pagarem meio bilhão de dólares. Os contribuintes europeus pagarem 480 milhões de euros. Para salvar os bancos, que foram os autores do estelionato. Todos nós sabemos que exploram trabalho escravo à distância, terceirizando. Um crime. Todos nós sabemos que extorquem países endividados. Todos nós sabemos que corrompem. A corrupção tem os aspectos ativo e passivo. Os únicos que estão caindo são os passivos. Os que recebem. E os que oferecem, quem são?  Quem tem capacidade corruptora? Este mesmo capitalismo financeiro. Eles são os corruptores. É uma atividade criminosa. Esse poder financeiro, que quer ocupar o lugar da política. Disputa, discute o lugar da política. Qual é o objetivo? É enfraquecer os Estados e evitar que os nossos Estados façam uma frente única, como o Mercosul. Mas, se olharmos para a Europa, a União Europeia também está sendo agredida.”
"A corrupção tem os aspectos ativo e passivo. Os únicos que estão caindo são os passivos. Os que recebem. E os que oferecem, quem são?  Quem tem capacidade corruptora? Este mesmo capitalismo financeiro. Eles são os corruptores."
Mídia “Mas o que tem a ver isso com a mídia, o que tem a ver isso com o sistema penal?”, indagou o jurista. “Tem muito.” Ele usou o exemplo do México, “um país onde o Estado perdeu o poder, a ponto de perder controle territorial”. Segundo ele, outro jeito de enfraquecer o Estado é pelo social. “Criar inimigos. Dificultar toda a possibilidade de comunicação interclassista.” É isso que ocorre com os países da região, em especial o Brasil, com taxas altíssimas de homicídio e grande desigualdade na distribuição de renda. “No México, a mídia faz um discurso racista. Falam ‘os mexicanos são violentos. Por causa disso é que temos esse alto nível de violência’. Olha como os astecas matavam, espanhóis também...a nossa história é uma história de sangue. Sim, é uma história de sangue. Um país que roubaram quase metade do território. É um discurso racista.” “O que faz a mídia? Cria uma realidade violenta através da reprodução de horas e horas dedicadas ao crime.  O homicídio do dia, se não tem um dia, vem da semana passada. Reproduz o homicídio 40, 50 vezes. E se tem alguma coisa sexual, muito melhor.” Excluídos Para Zaffaroni, a mídia monopolista está, permanentemente, incitando a vingança. “Mas não a vingança contra aquele criminoso grave. A vingança contra uma classe. A vingança contra o que seria uma casta. Max Weber falava que que na Índia era muito inteligente ter uma casta de párias. Porque era o jeito de todo o resto da população poder se considerar superior à casta de párias. E nas nossas sociedades cria-se através da mídia a ideia de uma casta de párias. Todas as outras classes acham que são classe média, embora já não sejam classe média. É uma classe iludida que é superior a uma casta de párias. E essa casta de párias é uma casta de criminosos, é uma casta de primitivos, é uma casta de imorais e todos os vícios imagináveis. Como não temos organizações terroristas, o estereótipo do criminoso entre nós é o adolescente de bairro precário.” Conforme ele explicou, querem fazer sociedades com 30% de incorporados e 70% excluídos. “O fenômeno deste momento no mundo não é exploração. Como falou muito bem o papa, é a exclusão. E aquele sujeito que está demais. É descartável. Mas, esse projeto de sociedade com 30% incorporados e 70% excluídos precisa da mídia para conter a exclusão, precisa reforçar o aparelho repressivo. Reforçando o aparelho repressivo, produz um efeito de reprodução de violência.”
"E nas nossas sociedades cria-se através da mídia a ideia de uma casta de párias. Todas as outras classes acham que são classe média, embora já não sejam classe média. É uma classe iludida que é superior a uma casta de párias."
Sistema penal brasileiro O Brasil, em sua análise, seria uma das situações mais preocupantes da região. “Vocês têm um alto nível de violência homicida. Mas têm cadeias superlotadas, cadeias que estão deterioradas. Uma superlotação que ultrapassa, longinquamente, os limites aceitáveis do padrão internacional. Toda a cadeia é deteriorante, por melhor que seja. Mas pessoas que saem dessa cadeia, saem com um estado de deterioração grave, sério. Se não temos 100% de reincidência em crimes maiores, é um milagre.” Com 726 mil presos, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) divulgado em dezembro de 2017 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Zaffaroni chamou a atenção para o fato de que além dos presos, há mais ou menos outras 700 mil ordens de prisão. “Ordens de detenção que não são possíveis cumprir porque não têm vagas nas cadeias.” Ele calcula que entre presos, processados e cumprindo pena em prisão preventiva, cerca de 3 milhões de pessoas estariam submetidas a processos penais, quase 2% dos brasileiros. “Mas o problema é pior ainda. Se eu tenho três milhões de pessoas e cada uma dessas pessoas tem pai, mãe, irmão, filha, mulher. Estamos contando, 5 ou 6 pessoas convivendo com aquela pessoa que esteja na prisão ou com ordem de detenção, com processo.” Para ele, há um processo de banalização da detenção. “Estão banalizando a coisa penal no final porque estão levando comida para o peso, estão indo para vara criminal, estão indo conversar com advogado. Uma coisa penal vira, para os 15, 20 milhões de brasileiros, uma coisa normal, como é ir para o pronto-socorro, como é ir para o hospital. Isso é muito sério. Esse aparelho está reproduzindo violência.” Segundo Zaffaroni, essa situação a que chegou o país foi sendo produzida ao longo do tempo. “E a grande maioria das nossas populações penais são crimes nem sequer violentos, contra propriedade, contra aquele que está na esquina vendendo cigarro de maconha. E é isso. Não chefe do grande cartel.” Por fim, o jurista ressaltou como o sistema penal brasileiro é compartimentalizado. “A polícia faz uma coisa, o Ministério Público faz outra, os juízes fazem outra, a Administração Penitenciária faz outra. E cada um faz o controle de qualidade setorial. Não tenho visto na minha vida uma grande compartimentalização tão enorme como aqui no Brasil. E chega o limite dos tribunais estarem produzindo ordens de detenção sem ter conta da capacidade das outras agências.” *Colaborou Michelle Falcão