11 de setembro: o dia que golpeia o argumento do liberalismo democrático

Costumamos lembrar do dia, há 47 anos, em que Pinochet liderou o ataque ao Palácio de La Moneda, que terminou com a morte de Salvador Allende e seu projeto socialista. O que os liberais não gostam de recordar é do liberalismo implantado a ferro e fogo que veio depois

Encontro entre o guru liberal Milton Friedman e o ditador Augusto Pinochet, no Chile dos Anos 70 (foto: CEP Chile)
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Desde que Caetano Veloso ousou dizer que começou a ver o liberalismo com outros olhos, devido à leitura da obra de Domenico Losurdo, os liberais brasileiros ficaram furiosos. O próprio Pedro Bial não escondeu seu incômodo naquela entrevista, e tentou renovar a burra associação entre nazismo e comunismo, rebatida pelo próprio compositor baiano.

Nos dias posteriores, os liberais da imprensa brasileira, de diferentes meios, reagiram com um ataque em conjunto contra o professor e youtuber Jones Manoel, que havia recomendado o autor italiano a Caetano – numa versão da velha receita autoritária de “matar o mensageiro”, acrescida de ingredientes racistas, já que ninguém ousou questionar o cara branco que escreveu o livro, nem outro branco que leu e gostou dele.

Passamos os últimos dias com o exército de jornalistas liberais espalhados pelos meios de comunicação hegemônicos reforçando as atrocidades soviéticas, não só para rotular os conceitos de comunismo e revolução como ideias antidemocráticas, mas também para impor a de que o liberalismo seria a antítese disso, por sua suposta infalibilidade democrática.

No entanto, há um problema nessa narrativa, e a memória deste dia 11 de setembro esconde a raiz desse problema. Já não são poucos os deixaram de associar a data somente com o ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001. As pessoas aprenderam que o bombardeio ao Palácio de La Moneda, liderado pelo general Augusto Pinochet, em 1973, também aconteceu em um 11 de setembro.

Ouso dizer, inclusive, que os liberais estão entre os que mais recordam esse acontecimento, e somente este acontecimento, uma versão que busca resumir a ditadura chilena a este golpe. Como se a fama de Pinochet fosse resultado de apenas um dia de atrocidades, e não de 17 anos do regime mais sanguinário da América Latina.

A razão pela qual se omite o que aconteceu na maioria dos anos da ditadura chilena é para esquecer do envolvimento dos liberais com aquele regime.

Não é segredo para ninguém que o Chile foi o berço do neoliberalismo econômico como conhecemos hoje. Os chamados “Chicago Boys”, economistas chilenos pós-graduados na Universidade de Chicago, voltaram ao seu país em meados dos Anos 70, e Pinochet os colocou no comando dos ministérios da Economia, Trabalho, Minas e Energia, Comércio e Planejamento.

Não só tinham a economia do Chile em suas mãos como contavam com a supervisão direta de Milton Friedman, o idealizador dos dogmas econômicos que formariam, anos mais tarde, o Consenso de Washington. Antes de seus discípulos assumirem as rédeas do país, aquele herói do liberalismo se encontrou pessoalmente com Pinochet, pediu permissão a ele para usá-lo como cobaia das suas ideias econômicas e recebeu um sim como resposta – inclusive, agradeceu com uma carta cheia de elogios ao ditador.

Os liberais não gostam de lembrar disso, mas admitem quando são recordados. No entanto, têm uma desculpa para isso: segundo eles, Friedman e sua turma ignoravam as violações aos direitos humanos. Pobres e inocentes homens, não sabiam que os militares circulavam pelas ruas a paisana, em carros sem placa, e que sequestravam, torturavam, estupravam, assassinavam pessoas, ocultavam os corpos, e tudo isso em nome daquele modelo econômico que eles estavam implantando.

Numa metáfora de mesa de bar, seria como dizer que o Paulo Guedes não sabe que o Bolsonaro é absurdamente machista, racista, homofóbico e representa vários dos valores questionados pelo liberalismo no que diz respeito a direitos civis. O relato de Guedes inclusive reivindica aquele de que “apesar das atrocidades, os neoliberais transformaram o Chile em uma potência econômica na América Latina”.

O problema é que se trata de um conjunto de ao menos três falsas premissas. A primeira delas é que o Chile de 1973 vivia uma crise econômica resultado de um suposto fracasso do projeto de Allende. Havia sim um problema de desabastecimento no país, mas era ocasionado por meses de uma greve de caminhoneiros e por empresários que escondiam mantimentos, em ações que foram apoiadas logística e financeiramente pelos Estados Unidos, para desestabilizar o governo socialista – algo que hoje se sabe graças aos documentos desclassificados nos últimos anos, relativos à Operação Condor.

A segunda é a de que Pinochet e os Chicago Boys “salvaram” a economia chilena. A recuperação observada após logo o golpe de Estado não foi fruto de nenhuma medida econômica da ditadura, e sim do simples fato de que as oligarquias e os Estados Unidos pararam de sabotar o país. Por exemplo, os caminhoneiros já não estavam em greve e os comerciantes deixaram de esconder produtos.

Ainda assim, entre o final dos Anos 70 e quase toda a primeira metade dos Anos 80, o Chile viveu uma crise econômica brutal, essa sim, causada pelas políticas neoliberais e não por nenhuma ação desestabilizadora estrangeira.

O Chile de Pinochet viveu índices de miséria tão terríveis quanto os de países capitalistas da América Central (naquele então ou agora), resultado de medidas como o fim da previdência social – substituída por um sistema de capitalização controlada pelas empresas do sistema financeiro –, a privatização dos recursos naturais e a mutilação das leis trabalhistas, entre outras.

Aliás, àqueles que não acreditarem no desastre econômico do neoliberalismo chileno, recomendo a leitura desta entrevista que minha talentosa colega Patrícia Faermann fez com o economista Ricardo Ffrench-Davis, um dos raros “Chicago Boys” críticos ao modelo econômico da ditadura – sem deixar de acreditar nos dogmas neoliberais. (Vale destacar que Faermann é uma das jornalistas do GGN que tiveram material censurado semanas atrás, porque ele contrariava interesses do banco BTG Pactual, e essa censura não contou com a solidariedade de nenhum desses jornalistas liberais apoiadores da democracia. Mas, enfim, eles deviam estar ocupados. Prossigamos).

Esconder esse cenário de profunda crise econômica no Chile de Pinochet é parte fundamental do relato neoliberal. Porque, ao saber que o ditador enfrentou problemas econômicos durante tantos anos, a primeira pergunta que surge é “como se manteve no poder então”. A resposta não é difícil de imaginar, e destrói completamente a narrativa do liberalismo democrático. O neoliberalismo chileno foi implementado GRAÇAS às atrocidades do regime e não APESAR delas. Os sequestros, torturas e assassinatos foram a resposta a quem ousava reclamar das consequências daquele modelo. Cidades do interior e bairros da periferia de Santiago chegaram a ser sitiados pelos militares quando havia crise e revolta solcial. E a censura completava o coquetel, impedindo que aquela realidade fosse difundida ao resto do mundo.

Não foi por acaso que Paulo Guedes, esse “Chicago Boy” extemporâneo, encontrou em Bolsonaro a figura capaz de realizar seu projeto econômico. Ele viveu naquele Chile dos Anos 80 e sabe que o modelo carece de um presidente capaz de usar a força para impor as medidas, e resistir aos seus resultados – que estão apenas começando, com o desemprego, a desvalorização do real e o aumento dos preços dos alimentos como primeiros sintomas.

O Chile de Pinochet ainda está vivo, já que o modelo econômico legado pela ditadura nunca deixou de estar vigente. A terceira das premissas que falei foi desmentida apenas no ano passado, com a revolta social no país. Milhões de chilenas e chilenos nas ruas disseram ao mundo que a tal “estabilidade econômica” era uma grande balela.

O cidadão médio no Chile está endividado até o pescoço, não aguenta ter que pagar caro por todos os serviços públicos, que ainda por cima são de péssima qualidade. O liberalismo mata até mesmo na democracia, empobrecendo as pessoas. Fazendo com que aposentados que nunca deixaram de contribuir recebam pensões miseráveis, administradas por empresas privadas que estão entre as mais lucrativas do país. Fazendo com que até os rios e os marestenham donos, e só possam ser acessados mediante pagamento. Fazendo com que a educação e a saúde sejam bens de consumo.

O Brasil está vivendo apenas os primeiros sintomas do projeto que foi implantado no Chile durante a ditadura de Pinochet, e que só resultou em uma revolta social após pouco mais de 40 anos, depois que vários governos (alguns deles do Partido Socialista) que foram eleitos prometeram desmantelá-lo, mas não cumpriram a palavra – um acúmulo de frustações que também explica a massividade daquelas manifestações de 2019.

Portanto, os liberais brasileiros que insistem na tese da “indiscutível virtude democrática do liberalismo” podem ficar tranquilo. Enquanto for possível esconder os exemplos estrangeiros, ainda há tempo de proteger sua mitologia.