Valeu a pena: Carta de Cesare Battisti aos companheiros

"Valeu a pena? Sim, sem dúvidas, porque, apesar do massacre, ainda tenho vontade de ter um cérebro todo meu, uma cadeira e uma mesa para escrever à vocês, à minha família e à todos aqueles que ainda querem ler"

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Texto traduzido por Rodrigo Ardissom de Souza e Perez Gallo, do Infoaut Publicamos essa carta de Cesare Battisti dirigida aos companheiros porque acreditamos que é importante seguir discutindo esta questão mastigada, regurgitada e completamente esquecida pelas mídias. Achamos que é necessário reconhecer o contexto onde a “confissão” do Battisti aconteceu, após anos da construção de um bode expiatório e da auto-absolvição [1] total da sociedade italiana sobre as questões dos anos setenta, com a vontade, mais uma vez, de exorciza-los para negar que alguma vez tenham existido. Este horrível espetáculo pornográfico produzido no seu retorno a Itália, numa Itália sem história, serve como um ensaio do quanto a imagem de “último dos moicanos [2]” foi colocada sobre ele apenas para reforçar a narrativa dominante. Entretanto, depois de tudo, Cesare Battisti é apenas um proletário que escolheu opor-se ao capital com as ferramentas e os recursos que possuía, e que, pelos amargos caminhos do destino, foi catapultado no proscênio da propaganda capitalista sem trair a ninguém, a não ser a ideia que muitos tinham sobre ele - De que estaria se dissociando? De um processo político e social terminado há quase trinta anos? Outras foram as dissociações em tempos bem mais tumultuados [3]. Uma abjura fora do tempo é, pelo menos, muito mais humana que alguém que de oprimido virou carrasco. Leia a carta Me perguntaram se era verdadeiramente necessário assumir as responsabilidades políticas e penais frente à Procuradoria de Milão? Me pergunto - qual necessidade move aqueles que fazem esta pergunta? Porque, se eu soubesse exatamente o que esperavam de mim, seria muito mais fácil me colocar no lugar deles e talvez encontrar alguma boa justificativa, o que seguramente não falta, para duvidar da minha própria decisão. Mas quantos deles, aos quais gostaria sinceramente de responder, não apenas porque o merecem, mas também porque acredito ser um dever de companheiro, quantos podem de verdade se colocar no meu lugar? Ou seja, como posso eu explicar o que me acontece agora, sem poder dizer que o agora é o resultado acumulado nos últimos quarenta anos, sobre tudo desde fevereiro de 2004 na França até o 23 de março em Oristano? Consideramos apenas os últimos quinze anos. Eles têm sido um inferno continuo, entre anos de cadeia, detenções absurdas, enorme gasto de energias pessoais e de forças solidárias, numa perseguição implacável, incondicional e nunca antes vista. Eu tive que abandonar várias vezes a minha casa, a minha família, ser renegado publicamente nas ruas, despedido dos empregos – isso quando conseguia encontrar um, tudo isso por causa de uma opinião pública envenenada por uma propaganda midiática sem escrúpulos, que possuía a finalidade de me desmontar toda vez que eu conseguia estabelecer uma vida minimamente normal. Vamos esquecer os graves problemas financeiros, terminaria sendo ridículo. Por isso me pergunto se será possível que com uma perseguição assim, com estes instrumentos e uma duração além do imaginável resistir? Seria possível, digo eu, que aquelas boas cabeças de companheiros visionários haviam conseguido resistir ao envenenamento da desinformação, que não haviam deixado ser influenciadas elas também, inconscientemente de forma moderada, como um martelo que de tanto bater vence o prego, por uma organização midiática tão perversa e mentirosa? Porque, se não for assim, como explicar então que alguns companheiros pretendem de mim exatamente o mesmo que espera a opinião pública, as leis e as instituições? O “mito Battisti” tem sido criado para poder depois abatê-lo, isso se entende e tem uma lógica feroz; aquilo que não se entende é o “mito” ser retomado pelos companheiros, como um bom “mito” para se mostrar em nome da luta revolucionária. E acontece que pouco importa que aquele “mito” seja feito de carne e osso, que não aguente mais ser martirizado – um mártir existe para estar, segundo os gostos, de um lado ou de outro da barricada. No fundo, quem eu teria afetado assumindo as minhas responsabilidades relativas à um processo definitivo, arquivado e demonizado? Não seria devido falar do fracasso da luta armada? E porque não? Já que eu o tinha feito com ênfase em 1981. Há alguém hoje que possa honestamente dizer que a luta armada valeu a pena? (e não confundamos o Movimento com os partidos combatentes). Tomei esta decisão porque era necessário desmitificar o monstro, afirmar que sou apenas humano, caso contrário teria sido melhor se tivessem me atirado do avião do Estado. Querem ter uma ideia clara do que tive de me livrar? Pois bem, perguntem se acharem conveniente aos amigos da rua, familiares, conhecidos, colegas, perguntem para eles o que acham do Cesare Battisti e terão a resposta sobre que era, e o que me tirava o fôlego. Confessei sem pedir uma redução de pena, pelo contrário, essa foi a premissa, e nestes últimos dias vocês assistiram à confirmação da minha prisão perpetua por parte do Tribunal Criminal de Milão, a qual grosseiramente legalizou um sequestro de uma pessoa na Bolívia. Aliás, a única prisão perpetua do processo PAC [Proletari Armati per il Comunismo]! A pergunta a ser feita seria mais concretamente esta: valeu a pena? Sim, sem dúvida (a parte as omissões que deixei passar ao momento de assinar o acordo, lamento o cansaço), porque, apesar do massacre, ainda tenho vontade de ter um cérebro todo meu, uma cadeira e uma mesa para escrever à vocês, à minha família e à todos aqueles que ainda querem ler. Escrevi rapidamente, não vou fazer correções e, se incentivado, posso contar em outro momento os bastidores de Ciampino, imagino o que a mídia vomitou sobre. Um abraço para quem desejar.   [1] O termo auto absolvição se refere a uma tentativa prolongada na história por parte da classe dirigente, em desqualificar os sucessos dos anos setenta. Este processo levou a um esquecimento generalizado sobre este momento histórico, que a esquerda antagonista reivindica até os dias de hoje, como uma quase guerra civil. [2] No texto original “Último japonés”, que é uma expressão comum em língua italiana, fazendo referência a Segunda Grande Guerra- onde os japoneses foram os últimos a continuar lutando mesmo depois da queda do regime nazista de Hitler. [3] Dissociação se refere a os múltiplos episódios de arrependimento com “delação premiada” que muitos ex militantes realizavam nos anos 80.