Há 10 anos saía do Iraque o último soldado dos EUA, deixando um país arrasado

Ocupada por oito anos, a nação árabe governada durante décadas por Saddam Hussein é agora um perigoso caldeirão assolado por uma crise socioeconômica infinita

Foto: Iraquiano olha desolado os escombros em Mosul (site Remembering Mosul / Reprodução)
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Quem tem mais de 35 anos deve lembrar da interrupção da programação das redes de TV aqui no Brasil, na noite de 20 de março de 2003, para que imagens de uma chuva de mísseis rasgando os céus de Bagdá fosse transmitida, anunciando o que já havia sido selado semanas antes pelo governo e o Congresso dos EUA: a derrubada de Saddam Hussein e a ocupação do país por uma coalizão militar.

Na esteira dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que num primeiro momento direcionou as forças militares da maior potência do planeta para o Afeganistão, agora era a vez do Iraque ser dominado, sob uma rocambolesca alegação de que o regime liderado por Saddam Hussein era detentor de armas de destruição em massa, que eventualmente poderiam ser usadas contra alvos e interesses norte-americanos. As armas nunca existiram e posteriormente assumiu-se que o dossiê com as acusações era uma fraude.

No dia 15 de dezembro de 2011, o último soldado dos EUA tirava os seus coturnos do Iraque, pelo menos oficialmente, já que o país voltou a incursionar na nação árabe anos depois, nos desdobramentos da Guerra da Síria, quando o Estado Islâmico dominou regiões do país localizado onde outrora fora a Mesopotâmia. Após a saída dos norte-americanos do território iraquiano, há exatamente 10 anos, o saldo de mortos é assustador: além dos 4.800 militares enviados para lá pela Casa Branca, mais de 112 mil civis morreram apenas na primeira década após o início da invasão.

Para falar sobre a situação atual do Iraque, a Fórum foi ouvir um pesquisador da área. Rodrigo Augusto Duarte Amaral é professor de Relações Internacionais da PUC-SP, mestre e doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), especialista em estudos políticos do Iraque.

Fórum – Socioeconomicamente, como está o Iraque hoje, 10 anos após o fim formal da ocupação pelos EUA?

Rodrigo Amaral – “A gente pode resumir a situação do Iraque numa única frase: é um estado fragmentado em vários aspectos. Um estado dividido em termos de grupos políticos no poder, dividido na quantidade de interesses dissipados, altamente dependente das dinâmicas tanto regionais, como internacionais e que desde 2003 não encontrou a tal estabilidade prometida, a estabilidade democrática com a remoção do Saddam Hussein prometida pela coalizão de autoridade provisória liderada pelos EUA. É um país que permanece em crise.”

Fórum – O povo iraquiano sente então a necessidade de coisas básicas, até mesmo de se ver como um país soberano?

Rodrigo Amaral – “Há uma sociedade reclamando com o governo, reclamando a falta de emprego, da crise econômica, reclamando de corrupção, até porque esse é um assunto muito latente por lá, e há por outro lado uma incapacidade do estado de manter a própria integridade do país, porque há o Estado Islâmico, que é um grupo totalmente dissociado do estado iraquiano, insurgente, denominados terroristas, e que consegue aterrorizar até hoje parte daquela população, ainda que tenha decaído muito o seu poder de 2017 pra cá.”

Fórum – E a tão falada democracia prometida pelos EUA? Quem governa o Iraque?

Rodrigo Amaral – “É importante mencionar que o Iraque é uma democracia, um país que tem eleições recorrentes, periódicas, conforme foi pensado e estabelecido no período da ocupação e da reconstrução do país, mas é aquilo. São muitos grupos e que têm agendas muito diversas e vale lembrar que nós estamos falando de uma nação que tem uma diversidade étnica e cultural muito grande, afinal, a Mesopotâmia é o berço da humanidade, e claro que esse é um dos fatores de instabilidade também. Há muitos grupos e partidos e evidentemente, lá atrás, esses grupos não tinha estrutura política, tampouco militar, para combater o regime do Saddam Hussein. É a partir dos anos 90, com o apoio dos EUA, que começam a se desenvolver planos, e eles passam a ser implementados a partir de 2003. Claro que essa intenção de remover Saddam Hussein era a única coisa em comum que esses grupos tinham.”

Fórum – As milícias atrapalham esse processo?

Rodrigo Amaral – “Quando a gente fala de milícias no Iraque, nós não estamos falando propriamente de grupos ilegais, até porque o governo iraquiano reconheceu várias milicias como grupos paramilitares apoiados e reconhecidos pelo estado no contexto do combate ao Estado Islâmico. Esse quadro é um dos fatores que dificultam a estabilidade do país e que dificulta especialmente o exercício político.”

Fórum – Os EUA seguem tendo influência no Iraque atualmente?

Rodrigo Amaral – “Nós temos uma influência muito grande dos EUA no Iraque, mas claro que não é a mesma de 2003 e de 2004, no contexto da intervenção militar, quando os EUA ganharam o status oficial de governantes do Iraque, ainda que de maneira provisória, reconhecidos até pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. No Iraque de hoje, o que emerge é um modelo econômico liberal, muito similar ao modelo ocidental, um modelo capitalista, privado, o que resulta numa presença comercial, empresarial norte-americana no país. Isso se dá principalmente na questão do petróleo, que é o grande negócio iraquiano, e que na época de Saddam Hussein era nacionalizado e agora passou para uma abertura, para uma privatização. Nós precisamos lembrar também da presença dos norte-americanos no Iraque por razões geopolíticas, já que por sua posição geográfica, ao lado do Irã, ele faz parte da lógica de poder dos EUA.”

Fórum – Há os saudosistas do regime de Saddam Hussein?

Rodrigo Amaral – “Sim, existe um saudosismo em relação ao regime de Saddam Hussein, sobretudo quando nós falamos dos membros da sociedade com um pouco mais de idade, e que viveram os anos 70, no auge econômico e de poder do Iraque no Oriente Médio, num cenário alavancado pela crise mundial do petróleo, mesmo que num regime político restritivo. Ainda assim, havia um número significativo de apoiadores do Saddam Hussein desde aquele período. Por ser uma figura muito forte, há uma ala da sociedade iraquiana que gostava disso tudo e que em alguma medida era beneficiada pelo seu governo. Já entre jovens que nasceram nos anos 90, ou até um pouco antes disso e que foram bastante prejudicados no contexto da Guerra Irã-Iraque, e também nos períodos mais pra frente, marcados por uma forte crise, essa juventude em si, não tem esse saudosismo.”

Fórum – Qual o papel da comunidade internacional no Iraque contemporâneo?

Rodrigo Amaral – “Quando a gente fala de comunidade internacional vem logo à cabeça a ONU. E assim, existe até hoje uma missão de assistência das Nações Unidas para o Iraque, além de outros representantes da ONU atualmente dentro do país. Num segundo aspecto há a responsabilidade que ainda fica nas costas dos EUA. Já mencionei isso anteriormente e claro, essa é uma presença internacional que se mantém, afinal eles foram os grandes mandatários com a remoção de Saddam Hussein do poder. Sem dúvida nenhuma, atualmente temos novos atores que entraram no Iraque por parte da comunidade internacional. Nos últimos anos há uma presença grande de empresas chinesas, assim como há a presença de empresas e corporações públicas iranianas, ou seja, há uma presença internacional forte até o hoje no país.”

Fórum – O país segue na dependência de potências mundiais, então, mesmo após ter sido oficialmente desocupado?

Rodrigo Amaral – “A gente precisa lembrar que o Iraque é uma nação historicamente afetada, e de forma recorrente, pelas lógicas de poder das grandes potências internacionais. O Iraque completou 100 anos e nesses 100 anos, mesmo antes de ser concebido como um estado em si, é um espaço geopolítico influenciado pelas potências, seja o Império Otomano, ou o Império Britânico, enfim.”