Um antibiótico com potencial para retardar o envelhecimento, combater o câncer e prevenir a rejeição de órgãos transplantados movimenta uma indústria bilionária. O que o sucesso em torno dos benefícios confirmados e os possíveis da rapamicina esconde, no entanto, é uma história de colonialismo científico e biopirataria.
Descoberta a partir de uma amostra de solo da Ilha de Páscoa, ou Rapa Nui em seu nome indígena, a molécula milagrosa enriqueceu laboratórios farmacêuticos enquanto o povo originário local, cuja participação foi crucial, foi completamente apagado da história e privado de qualquer benefício.
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Em artigo publicado no The Conversation, o professor de Biologia Molecular e Celular da Universidade da Califórnia, Ted Powers, aponta que "seu uso se expandiu para o tratamento de vários tipos de câncer, e pesquisadores estão atualmente explorando seu potencial para tratar diabetes , doenças neurodegenerativas e até mesmo o envelhecimento".
E o potencial do medicamento não se resume a isso. "De fato, estudos que levantam a promessa da rapamicina de prolongar a vida útil ou combater doenças relacionadas à idade parecem ser publicados quase diariamente. Uma busca no PubMed revela mais de 59.000 artigos de periódicos que mencionam a rapamicina, tornando-a um dos medicamentos mais comentados na medicina", explica Powers.
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'Laboratório vivo'
A história dita oficial, contada pela indústria, atribui a descoberta aos laboratórios da farmacêutica Ayerst, que isolaram a molécula da bactéria Streptomyces hydroscopicus nos anos 1970. Contudo, essa versão omite um fato essencial: a amostra de solo foi coletada em 1964 durante a Expedição Médica à Ilha de Páscoa, uma missão canadense que, sob o pretexto de estudar uma população isolada, abriu caminho para a exploração de seus recursos biológicos sem o devido reconhecimento ou consentimento.
Liderada pelo cirurgião Stanley Skoryna e pelo bacteriologista Georges Nogrady, a expedição tratou o povo Rapa Nui como um “laboratório vivo”.
"É importante perceber que o objetivo principal da expedição era estudar o povo Rapa Nui como uma espécie de laboratório vivo. Eles incentivaram a participação por meio de suborno, oferecendo presentes, comida e suprimentos, e por meio de coerção, recrutando um padre franciscano de longa data na ilha para auxiliar no recrutamento", ressalta Powers. "Embora as intenções dos pesquisadores possam ter sido honrosas, trata-se, no entanto, de um exemplo de colonialismo científico , em que uma equipe de pesquisadores brancos opta por estudar um grupo de indivíduos predominantemente não brancos sem a sua participação, resultando em um desequilíbrio de poder."
O projeto partia de premissas cientificamente falhas e carregadas de preconceito. Os pesquisadores assumiram que os Rapa Nui eram uma população geneticamente homogênea e isolada do mundo, ignorando uma longa e complexa história de migrações, contato com exploradores europeus, escravidão e miscigenação. Esse erro metodológico não apenas comprometeu os objetivos declarados da pesquisa, como também revelou a visão eurocêntrica que desconsidera a história e a complexidade dos povos originários.
Quando a ciência se transforma em exploração
A jornada da amostra de solo de Rapa Nui até se tornar o medicamento bilionário Rapamune poderia também ser entendida como um roteiro de biopirataria. Georges Nogrady, que coletou a amostra, e a própria expedição jamais foram creditados nas publicações da farmacêutica. Enquanto o cientista Surendra Sehgal é celebrado por sua persistência em desenvolver o medicamento, o povo Rapa Nui, em cujo território a descoberta foi feita e que serviu como objeto de estudo, não recebeu um centavo dos lucros bilionários gerados.
Argumentos frágeis são utilizados para justificar a ausência de compensação, como o fato de a bactéria produtora de rapamicina ter sido encontrada posteriormente em outros locais. Tal justificativa ignora que a descoberta original em Rapa Nui foi o catalisador que iniciou toda a cascata de pesquisa e desenvolvimento. A comercialização da molécula só foi possível porque a expedição estudou o povo da ilha, tornando-os parte indissociável da origem do medicamento.
"Nos últimos anos, a indústria farmacêutica em geral começou a reconhecer a importância de uma compensação justa pelas contribuições indígenas. Algumas empresas se comprometeram a reinvestir em comunidades onde são obtidos produtos naturais valiosos. No entanto, para os Rapa Nui, as empresas farmacêuticas que lucraram diretamente com a rapamicina ainda não fizeram tal reconhecimento", pontua o professor.
O caso da rapamicina expõe as feridas abertas do colonialismo na ciência e a necessidade urgente de reparação histórica. Embora acordos internacionais como a Convenção sobre Diversidade Biológica busquem hoje proteger os direitos indígenas, eles não existiam na época da expedição. "Acredito que questões como consentimento biomédico, colonialismo científico e contribuições negligenciadas destacam a necessidade de um exame mais crítico e de uma conscientização mais aprofundada sobre o legado de descobertas científicas revolucionárias", finaliza Powers.