Na próxima terça-feira (7), completam-se dois anos do ataque do Hamas a Israel — e uma longa reportagem publicada neste domingo (5) pelo New York Times marca uma virada profunda na forma como o conflito é retratado pela imprensa internacional.
O texto, assinado pelo veterano repórter Roger Cohen, tem tom melancólico e introspectivo, descrevendo ruínas, silêncios e o colapso emocional de duas sociedades presas ao trauma.
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A narrativa começa no kibutz Nir Oz, símbolo do horror vivido por Israel em 2023, e termina nas tendas de Gaza, onde famílias palestinas tentam sobreviver em meio à destruição. Essa estrutura — do sofrimento israelense ao desespero palestino — reforça a ideia de dor compartilhada e estagnação histórica.
Diferente das coberturas iniciais, que buscavam equilibrar “os dois lados”, o New York Times adota agora um olhar humanista e crítico, centrado no esgotamento moral coletivo. Se em 2023 o discurso dominante era o do “direito à defesa”, dois anos depois o sentimento é de cansaço, desilusão e perda de propósito.
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A ruptura dentro de Israel
Entre as vozes ouvidas, destaca-se a do ex-ministro da Defesa Moshe Yaalon, que acusa o governo de Benjamin Netanyahu de promover “limpeza étnica” e “supremacia judaica”. Em 2023, uma declaração desse tipo seria impensável na imprensa ocidental; em 2025, ela é publicada com destaque — reflexo de uma mudança global na percepção sobre Israel.
Visivelmente abalado, Yaalon afirma:
“Perdemos o nosso caminho. Oitenta anos depois do Holocausto, estamos falando sobre limpeza étnica, supremacia judaica, sobre esvaziar Gaza de seus habitantes. São esses os valores do Estado de Israel?”
Em lágrimas, ele completa:
“Lutei para defender um Estado judeu, democrático e liberal, no espírito da nossa Declaração de Independência. O que temos hoje é uma liderança tirânica, racista, odiosa, corrupta e isolada.”
A fala de Yaalon funciona como voz de consciência nacional, refletindo o rompimento de parte da elite militar e política com Netanyahu, acusado de trair os princípios fundadores de Israel e colocar seus interesses pessoais acima do país.
Memória, trauma e identidade
A reportagem também estabelece um paralelo simbólico entre o Holocausto e a Nakba, afirmando que “o massacre de 7 de outubro reforçou as associações com o Holocausto para os israelenses, enquanto a guerra em Gaza se tornou uma nova Nakba para os palestinos”. O trecho não equipara moralmente as duas tragédias, mas mostra como ambas alimentam o ciclo interminável de ressentimento e vingança.
O retrato de Israel é o de uma nação esgotada e dividida, onde o luto deu lugar à exaustão. Cohen descreve suicídios entre soldados, emigração crescente e tensões cotidianas, sintomas de um país que venceu militarmente, mas perdeu espiritualmente. “Israel bate, mas já não acredita em si mesmo”, sintetiza o texto — uma crítica ao nacionalismo messiânico que domina o governo Netanyahu.
Gaza: o epicentro do sofrimento
O especial também dá espaço às vozes palestinas.
Riwaa Abu Quta, vivendo há mais de um ano em uma tenda, define Gaza como “um lugar de funerais”. Já Aisha Abu Alia, da vila de Al Mughayir, conta ter visto colonos israelenses destruírem suas oliveiras: “Arrancaram meu coração junto com as árvores”, diz ela.
Alternando entre Nir Oz, Tel Aviv e os campos de refugiados de Al-Mawasi, a reportagem desenha um mapa da dor: Israel aparece em crise de identidade; Gaza, como um cemitério de inocentes.
O New York Times resume o impasse em uma única frase:
“Israel e Palestina permanecem reféns — um do outro e de seu próprio passado.”
Depois de dois anos, a guerra já não é retratada como uma disputa territorial, mas como uma prisão emocional e histórica. A dor virou identidade, e a vingança, destino. O resultado é um retrato sem vencedores — apenas sobreviventes.
Trump age como chefe, Netanyahu como subordinado
Outra reportagem publicada também neste domingo pelo New York Times expõe um novo sintoma da exaustão política em Israel e da fragilidade de Netanyahu. O texto mostra que o primeiro-ministro tenta se apresentar como o autor do acordo que prevê a libertação dos reféns do Hamas e o fim da guerra em Gaza, mas quem realmente impôs os termos foi Donald Trump.
Segundo o jornal, o presidente dos Estados Unidos pressionou Netanyahu a aceitar o plano, dizendo: “Bibi, essa é sua chance de vitória — e você não tem escolha.” O acordo inclui cessar-fogo imediato e a troca de 20 reféns vivos e 28 corpos por 250 prisioneiros palestinos.
A reportagem retrata um Netanyahu enfraquecido e isolado, sem margem para confronto. Analistas israelenses afirmam que o premiê foi “humilhado publicamente” após ter de pedir desculpas ao Catar, mediador do acordo, por uma tentativa frustrada de ataque israelense em Doha.
A Casa Branca divulgou uma foto do episódio que se tornou símbolo dessa humilhação: Netanyahu aparece sentado, lendo um pedido de desculpas por escrito ao primeiro-ministro do Catar, enquanto Trump segura o telefone em seu colo, supervisionando a ligação com expressão de autoridade. A imagem, amplamente reproduzida pela imprensa, cristalizou a nova hierarquia entre os dois líderes — Trump no papel de comandante; Netanyahu, de subalterno constrangido.
O plano, imposto por Trump, inclui ainda uma “via crível” para a criação de um Estado palestino, cláusula que contradiz frontalmente a principal bandeira política de Netanyahu. Mesmo assim, ele tenta vender o acordo como “a maior conquista de Israel” — um ato de sobrevivência política diante da perda de prestígio.
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Para o New York Times, o episódio simboliza uma inversão de papéis: Trump age como chefe, e Netanyahu, como subordinado — um retrato do desgaste moral e do isolamento global de Israel após dois anos de uma guerra que já não produz vitórias, apenas resistência e esgotamento.
A virada global na percepção sobre Gaza
Dois anos após o início dos bombardeios, a opinião pública internacional também mudou. A escalada de violência — agravada pelo sequestro de ativistas da Flotilha Global Sumud, que levavam ajuda humanitária a Gaza — expôs a brutalidade da ocupação e provocou repulsa mundial.
Pesquisas do New York Times, da Universidade de Siena e do Pew Research Center indicam que, pela primeira vez, a maioria dos eleitores nos EUA e em vários países rejeita Israel e se solidariza com os palestinos. Jovens e democratas lideram essa virada, impulsionados por uma percepção crescente de que o país tem matado civis intencionalmente.
Essa mudança resulta da transformação do discurso midiático internacional, agora mais crítico e empático, somada à pressão popular nas ruas de Londres, Paris, Buenos Aires e Nova York.
A combinação de mobilização social, denúncias de violações e cobertura jornalística mais honesta alterou a narrativa global: o que antes era descrito como “defesa de Israel” agora é reconhecido como uma tragédia humanitária sem justificativa.
A chamada “virada de Gaza” marca um consenso emergente: não é mais possível ignorar o sofrimento palestino, nem sustentar o silêncio diante da violência sistemática.