GUERRA AO TERROR

Trump redefine guerra ao crime e apaga fronteira entre narcotráfico e terrorismo

Nova política dos EUA amplia operações militares no Caribe, pressiona países latino-americanos a rever leis de segurança e inspira reação na Guiana, onde o presidente classificou como terrorismo uma explosão fatal

Trump redefine guerra ao crime e apaga fronteira entre narcotráfico e terrorismo.Nova política dos EUA amplia operações militares no Caribe, pressiona países latino-americanos a rever leis de segurança e inspira reação na Guiana, onde o presidente classificou como terrorismo uma explosão fatalCréditos: Casa Branca
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Um fantasma ronda a América Latina — e não é o do comunismo, mas o do terrorismo. Desde o retorno de Donald Trump à Casa Branca, os Estados Unidos adotaram uma política de “guerra total contra os cartéis”, ampliando operações militares e navais no Caribe. Sob o argumento da segurança, Washington exporta sua visão de mundo, diluindo as fronteiras entre crime e terrorismo.

A nova doutrina rompe com a cooperação tradicional antidrogas e adota uma abordagem militar e unilateral, baseada em ataques preventivos, sanções econômicas e ações diretas das forças dos EUA em territórios vizinhos.

Explosão em Georgetown e o discurso do terror

Neste sábado (1º), o presidente da Guiana, Irfaan Ali, classificou como “ato de terrorismo” a explosão em um posto de combustíveis em Georgetown, dias antes. Mesmo sem conclusão das investigações, o caso foi enquadrado como terrorismo — um juízo político mais do que um fato comprovado.

O ataque matou uma menina de seis anos e feriu quatro pessoas. O principal suspeito é um venezuelano supostamente ligado a um grupo criminoso, que teria atravessado a fronteira com explosivos.

“Este atentado cumpre todas as características de terrorismo”, afirmou Ali durante cerimônia militar. Até o momento, nove pessoas foram detidas.

O episódio mostra como o rótulo de terrorismo vem ganhando espaço no discurso político da região, reforçando uma lógica de medo e exceção. Quando governos adotam essa narrativa sem base em provas, a retórica da segurança substitui a prudência diplomática.

Tensões e estigmatização

A fala de Ali ocorre em meio à disputa entre Venezuela e Guiana pela região do Essequibo, rica em petróleo. O incidente reacendeu temores de militarização e criminalização de migrantes venezuelanos, frequentemente apontados como responsáveis pelo aumento da violência — em parte pela presença da quadrilha Tren de Aragua.

Ali reconheceu o risco de discriminação: “Não devemos permitir que a indignação nos leve ao preconceito”. Mesmo assim, o termo “terrorismo” vem sendo usado como ferramenta política, confundindo fronteiras entre crime, migração e segurança nacional.

Sob influência direta da política de Trump, a narrativa do terror se espalha pela América Latina, justificando medidas de exceção e reforçando discursos de força.

O Brasil entra na nova “guerra ao terror”

O Brasil segue a tendência regional de ampliar o conceito de terrorismo e associá-lo ao crime organizado. Após a operação policial comandada por Cláudio Castro (PL-RJ) no Rio de Janeiro, que deixou 121 mortos, o tema da segurança voltou ao centro do debate político.

Durante a operação no Rio, o governador afirmou que o Estado enfrentava “narcoterroristas”, expressão inédita em discursos oficiais e alinhada à retórica de Washington.

Governadores de direita anunciaram a criação do “Consórcio da Paz”, destinado a pressionar pela aprovação do projeto que classifica o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas — proposta alinhada à agenda de Trump.

Por videoconferência, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) liderou a articulação e defendeu mudanças na legislação penal para equiparar facções ao terrorismo. Participaram Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO), Eduardo Riedel (PP-MS), Jorginho Mello (PL-SC) e Celina Leão (PP-DF).

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, rebateu dizendo que terrorismo e crime organizado são categorias distintas. Para ele, o terrorismo tem motivações ideológicas, enquanto as facções atuam por lucro.

Enquanto isso, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP) reassumiu o mandato para relatar o projeto que amplia a definição de terrorismo, incluindo práticas como domínio territorial e uso de armas de uso restrito. O texto prevê penas de até 30 anos e transfere parte das investigações da Polícia Federal para os estados, fortalecendo o poder dos governadores.

Cúpula das Américas: o novo eixo da “guerra ao terror”

A movimentação dos governadores de direita ocorre em sintonia com a estratégia dos Estados Unidos, que vêm pressionando países latino-americanos a enquadrar cartéis e facções como organizações terroristas — tema que deve dominar a Cúpula das Américas, marcada para dezembro, na República Dominicana.

Segundo apuração de Jamil Chade (UOL), Trump pretende usar o encontro para formalizar a nova política regional de segurança, incentivando governos a tratar o narcotráfico e o crime organizado como terrorismo. A medida, já aplicada a dez grupos na América Latina, equipara cartéis ao tratamento dado à Al-Qaeda, abrindo precedente para incursões armadas norte-americanas em territórios estrangeiros.

Entre os alvos da política estão a Venezuela e a Colômbia, cujos presidentes — Nicolás Maduro e Gustavo Petro — são apontados por Washington como líderes de regimes “ligados ao narcotráfico”. A iniciativa é vista por analistas como uma forma de legitimar ações militares preventivas sob o argumento de combate ao terror.

O presidente Lula ainda não confirmou presença na Cúpula, mas deve liderar a divergência com a Casa Branca sobre o tema.

O impacto da estratégia já se espalha pela região. Nesta semana, Javier Milei, alinhado a Trump e em busca de empréstimos bilionários dos EUA, reconheceu o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas.

O Paraguai deve seguir o mesmo caminho: “Essas organizações transcendem a criminalidade comum; são verdadeiros terroristas que ameaçam a vida das pessoas e a soberania do país”, afirmou o ministro da Defesa Cíbar Benítez.

No Brasil, Tarcísio de Freitas assumiu o protagonismo do lobby pró-Trump, abrindo disputa com o clã Bolsonaro. Poucos dias antes, Flávio Bolsonaro havia elogiado as operações militares dos EUA e sugerido que Washington poderia “ajudar o Brasil a combater organizações terroristas”.

A guerra às drogas de Trump

Em janeiro, Trump assinou uma ordem executiva permitindo classificar cartéis latino-americanos como organizações terroristas. A medida autoriza sanções, bloqueio de bens e operações militares extraterritoriais sob o argumento de “proteger a segurança nacional”.

Desde então, os EUA intensificaram ataques a embarcações suspeitas no Caribe, especialmente nas costas da Venezuela, Colômbia e Equador. O Pentágono mobilizou destróieres e drones armados para patrulhar a região, e os ataques já causaram vítimas civis e denúncias de violação de soberania.

Estudo do CSIS: quando o crime vira terror

Um relatório do Center for Strategic and International Studies (CSIS), publicado em outubro, analisa as consequências dessa política. O estudo mostra que a distinção entre terrorismo e crime organizado se torna cada vez mais difusa, com cartéis como o CJNG e o Cartel del Golfo usando táticas de guerra, drones e execuções públicas para controlar territórios.

O México registrou mais de 30 mil homicídios em 2024 e 110 mil desaparecidos, segundo o relatório. O CSIS alerta que, embora busquem lucro e não objetivos ideológicos, muitos cartéis atuam como poderes locais, substituindo o Estado em regiões periféricas.

A pesquisa cita ainda a influência da política norte-americana sobre governos como o de Nayib Bukele, em El Salvador, e Daniel Noboa, no Equador, que classificaram gangues locais como organizações terroristas.

Para o CSIS, a nova estratégia amplia o poder do Executivo dos EUA e pressiona países da região a adotar medidas semelhantes. O relatório conclui que, embora possa dificultar a atuação de cartéis, essa política abre precedentes para ações militares e riscos à soberania latino-americana.

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