CRISE CAPITALISTA

Geração Z: protestos na Sérvia ecoam uma revolta global contra o neoliberalismo

De Belgrado ao Nepal, do Marrocos ao Quênia, passando por Lima, jovens se levantam contra a corrupção, a desigualdade e o fracasso do modelo neoliberal

Geração Z: protestos na Sérvia ecoam uma revolta global contra o neoliberalismo.De Belgrado ao Nepal, do Marrocos ao Quênia, passando por Lima, jovens se levantam contra a corrupção, a desigualdade e o fracasso do modelo neoliberalCréditos: AFP (Oliver Bunic)
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Centenas de policiais antimotim separaram opositores e apoiadores do presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, no centro de Belgrado neste domingo (2), em mais um episódio de tensão política após um ano de protestos contra o governo.
 

De um lado, aliados do governo mantêm desde março um acampamento em frente ao Parlamento; de outro, manifestantes exigem eleições antecipadas e justiça pelas 16 vítimas do desabamento da estação ferroviária de Novi Sad, ocorrido em 2024. Testemunhas relataram trocas de garrafas, sinalizadores e insultos, com a polícia formando cordões de isolamento.

A mãe de uma das vítimas, Dijana Hrka, iniciou uma greve de fome exigindo punição aos responsáveis e liberdade para os manifestantes detidos. Marchas em apoio a ela ocorreram também em Novi Sad e em outras cidades do país, ampliando a pressão sobre o governo.

O movimento estudantil, que cresceu após a tragédia, denuncia corrupção, licitações fraudulentas e negligência estatal na reforma da estação. O episódio tornou-se símbolo do desgaste de 13 anos de governo Vucic, marcado por autoritarismo, censura e desigualdade social.

Como a Sérvia chegou até aqui

A atual crise política é o resultado de décadas de instabilidade e concentração de poder. Desde o colapso da antiga Iugoslávia, a Sérvia vive sob ciclos de autoritarismo e promessas frustradas de modernização.

1990–2000: A era Miloševic e o colapso iugoslavo
Durante o regime de Slobodan Miloševic, o país mergulhou em guerras étnicas, sanções econômicas e repressão política. Sua queda, em 2000, parecia marcar o início de uma nova era democrática.

2000–2012: Transição e crise
Nos anos seguintes, a Sérvia buscou se integrar à União Europeia, adotando reformas de mercado e privatizações. Mas a liberalização trouxe desemprego, corrupção e aumento da desigualdade. O assassinato do primeiro-ministro reformista Zoran Ðindic, em 2003, foi um duro golpe nas esperanças de mudança.

2012–2025: Vucic consolida o poder
Ex-ministro da Informação de Miloševic, Aleksandar Vucic chegou ao poder prometendo estabilidade. Mas, ao longo da década, centralizou o Estado, controlou a imprensa e restringiu a oposição. O país passou a viver sob o que analistas chamam de “autoritarismo eleitoral” — eleições periódicas sem competição real. A promessa de estabilidade mascarou o avanço da pobreza e da corrupção sistêmica.

2022–2024: Do ambientalismo ao colapso
Em 2022, a parceria com a mineradora Rio Tinto para explorar lítio no vale do rio Jadar provocou protestos ambientais massivos. O governo suspendeu o projeto, mas o reativou em 2024, reacendendo a revolta popular. Nesse período, multiplicaram-se denúncias de fraudes eleitorais, nepotismo e repressão policial.

2025: O desastre de Novi Sad e o levante estudantil
O desabamento da cobertura da estação de Novi Sad, que matou 16 jovens e feriu dezenas, foi o estopim de uma revolta nacional. A tragédia escancarou a corrupção nas obras públicas e o distanciamento do governo em relação à população. Estudantes ocuparam universidades exigindo transparência, punição aos culpados e mais verbas para a educação. Em poucas semanas, greves e bloqueios se espalharam, com apoio de sindicatos, juristas e trabalhadores do setor público.

O cenário atual
A Sérvia vive, em novembro de 2025, sua maior mobilização popular desde a queda de Miloševic. O governo é acusado de tortura, censura e uso excessivo da força, enquanto a União Europeia mantém silêncio — interessada em preservar seus acordos de mineração e acesso ao lítio sérvio.

A insatisfação global da Geração Z

O levante sérvio não está isolado. Ao longo deste ano, uma nova onda de protestos estudantis e populares atravessa o planeta, unindo jovens da Geração Z em um mesmo grito de insatisfação. De Belgrado a Lima, de Katmandu a Nairóbi, milhões de jovens se levantam contra um sistema que consideram injusto, desigual e sem perspectivas reais de futuro.

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Na América Latina, o clima é semelhante. No Peru, estudantes e movimentos indígenas voltaram às ruas exigindo novas eleições e o fim da violência estatal sob o governo de Dina Boluarte.

Na Argentina, o movimento universitário lidera grandes protestos contra os cortes na educação pública e as reformas ultraliberais de Javier Milei. No Chile, secundaristas e universitários se mobilizam por transporte gratuito e contra o aumento do custo de vida, enquanto no México, coletivos jovens e feministas denunciam a violência policial e os feminicídios.

Essa geração — nascida entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2010 — cresceu em meio à crise climática, à precarização do trabalho e à falência das promessas neoliberais. É a primeira a compreender que o “crescimento econômico” deixou de significar segurança e mobilidade social.

A internet é o território onde essa revolta se organiza. Com hashtags, transmissões ao vivo e redes solidárias, jovens se articulam além das fronteiras nacionais, criando uma política global de resistência que conecta causas locais — como o preço da passagem, a corrupção ou a violência policial — a pautas universais como justiça ambiental, igualdade de gênero e direitos humanos.

O que une esses protestos é a percepção compartilhada de que o sistema capitalista não oferece futuro.

Onde o neoliberalismo falhou

  • Emprego e estabilidade: o “mercado aberto” e a flexibilização trabalhista produziram empregos instáveis e renda baixa.
     
  • Desigualdade: a promessa de mobilidade social foi quebrada; jovens endividados e sem acesso à moradia.
     
  • Serviços públicos sucateados: privatizações e austeridade corroeram saúde, educação e transporte.
     
  • Concentração de poder: elites econômicas e políticas se beneficiam à custa da maioria.
     
  • Colapso ambiental: a busca incessante por lucro deixou à Geração Z um planeta exaurido.

A guinada à direita da juventude

A frustração da Geração Z com o sistema capitalista em colapso não significa, necessariamente, que todas essas mobilizações sejam progressistas. Muitas são reacionárias.

Em várias partes do mundo, pesquisas mostram que uma parcela crescente dessa juventude está se inclinando para a direita, movida por desilusão, insegurança econômica e desconfiança nas instituições democráticas.

Estudos da Universidade de Melbourne, da Universidade de Oxford e do European Democracy Hub apontam um padrão claro: homens jovens, especialmente os que enfrentam desemprego e perda de status social, são os mais propensos a se identificar com discursos conservadores.

Essa tendência é reforçada pela “nova direita digital”, que se apresenta como alternativa ao “politicamente correto” e transforma raiva e ressentimento em identidade política.

Nos Estados Unidos, a Harvard Youth Poll revelou que o número de jovens homens brancos que se dizem conservadores aumentou em mais de 10 pontos desde 2020.

Na Europa, eleitores jovens de Marine Le Pen e Giorgia Meloni veem o voto na extrema direita como forma de “rebelião contra o sistema” — uma contestação não à autoridade, mas às elites liberais que prometeram prosperidade e entregaram estagnação.

Na América Latina, o fenômeno também se manifesta.

No Brasil, o bolsonarismo mobilizou parte da juventude com discursos de meritocracia, antipetismo e “liberdade individual”. Jovens que cresceram durante a crise dos anos 2010 associam o Estado à corrupção e veem em Bolsonaro, ou em figuras como Nicolas Ferreira e Kim Kataguiri, uma “resistência moral” contra o excesso de progressismo.

O MBL transformou o descontentamento econômico e o cansaço com a política tradicional em marketing político juvenil, misturando memes, escracho e conservadorismo.

Esse fenômeno revela uma contradição central da Geração Z: enquanto parte dela se organiza por justiça social, igualdade e sustentabilidade, outra busca refúgio em narrativas antifeministas, nacionalistas e autoritárias.

Ambas, porém, nascem do mesmo ponto: a sensação de que o mundo atual não oferece lugar para eles — e de que é preciso escolher entre transformar o sistema ou se proteger dele.

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