A cena política dos Estados Unidos sofreu um abalo sísmico nesta quarta-feira (5) com a vitória de Zohran Mamdani à prefeitura de Nova York. Autodeclarado “socialista democrata”, Mamdani derrotou de uma só vez as elites dos partidos Democrata e Republicano - e, claro, enfureceu a Casa Branca e seu atual ocupante, o presidente Donald Trump.
Com propostas que vão de tarifa zero no transporte público a creche universal e congelamento dos aluguéis, Mamdani arrastou multidões às urnas e conquistou o cargo de prefeito da maior cidade dos Estados Unidos.
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Mas o carisma e o ímpeto político de Zohran não surgiram do nada. Ele vem de um berço intelectual de peso: o novo prefeito socialista de Nova York é filho da renomada cineasta Mira Nair e do influente intelectual Mahmood Mamdani.
A trajetória de Zohran, aliás, envolve uma história curiosa que remonta às filmagens de um longa estrelado por Denzel Washington - um encontro no set que mudaria o destino de uma família e, décadas depois, da própria Nova York.
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O cinema enquanto ferramenta política
A cineasta Mira Nair nasceu em 15 de outubro de 1957, em Rourkela, na Índia, e construiu uma das trajetórias mais respeitadas do cinema contemporâneo ao unir poesia visual, crítica social e perspectiva pós-colonial em suas obras. Formada em Ciência Política pela Universidade de Delhi, Nair ganhou uma bolsa para estudar em Harvard, onde iniciou sua carreira como documentarista antes de migrar para a ficção.
Seu olhar cinematográfico é marcado pela fusão entre o íntimo e o político. Em “Salaam Bombay!” (1988), seu primeiro longa-metragem, Nair retratou a vida de crianças de rua em Mumbai com uma mistura de realismo e empatia que lhe rendeu o Caméra d’Or no Festival de Cannes e uma indicação ao Oscar. A partir dali, firmou-se como uma das vozes mais poderosas do cinema do Sul Global, abordando temas como migração, identidade, desigualdade e resistência cultural.
Em 1991, durante as filmagens de Mississippi Masala - estrelado por Denzel Washington e centrado na história de amor entre um homem negro americano e uma jovem indiana exilada -, Mira Nair conheceu o intelectual Mahmood Mamdani, professor ugandense especializado em estudos africanos e ciências políticas. O encontro entre arte e pensamento crítico transformou-se em parceria afetiva e intelectual: dessa união nasceria Zohran Mamdani, futuro prefeito de Nova York.
Com filmes como Monsoon Wedding (2001), vencedor do Leão de Ouro em Veneza, e The Namesake (2006), adaptação do romance de Jhumpa Lahiri, Nair consolidou uma filmografia que traduz as complexidades do encontro entre Oriente e Ocidente, dando protagonismo a personagens imigrantes, mulheres e identidades em trânsito. Fundadora da Maisha Film Lab, em Uganda, ela também se tornou mentora de novas gerações de cineastas africanos.
Mais do que diretora premiada, Mira Nair é uma intelectual pública, feminista e defensora das causas anticoloniais. Seu cinema dá voz a quem vive nas fronteiras do pertencimento - geográficas, culturais ou de classe -, tema que também atravessou a vida e a formação de seu filho.
O legado de Mira Nair na vitória de Zohran Mamdani
A vitória de Zohran Mamdani à prefeitura de Nova York, em 2025, é mais do que um marco político: é o desdobramento de uma herança cultural e intelectual. Filho de uma artista que filmou as contradições do mundo pós-colonial e de um pensador que teorizou sobre poder e identidade no Sul Global, Zohran cresceu em um ambiente onde justiça social, diversidade e pensamento crítico faziam parte da vida cotidiana.
Sua trajetória - nascida no bairro do Queens e marcada pela militância em causas populares - reflete o mesmo impulso transformador da mãe. Assim como Mira Nair traduziu as dores e sonhos dos marginalizados em imagens, Zohran transformou essa visão em política, levando para o centro da maior cidade dos Estados Unidos a voz dos imigrantes, trabalhadores e jovens progressistas.
Ambos compartilham uma missão semelhante: reimaginar o poder a partir das margens. Se Nair ensinou o mundo a olhar o outro com dignidade e sem exotismo, Mamdani propõe uma Nova York que se reconheça em sua própria diversidade - uma cidade que, como nos filmes da mãe, se torna espelho do mundo.
A vitória de Zohran é, assim, também a vitória simbólica de Mira Nair: da câmera que denunciava desigualdades à política que as enfrenta de dentro do poder. De mãe para filho, do cinema à cidade, o que se vê é uma continuidade ética e estética - uma história em que arte e política caminham lado a lado na defesa de um mesmo ideal de justiça.